Plantas medicinais, sua história e usos

Importância

Os primeiros usos de plantas medicinais pelos seres humanos foram detectados na época dos Neandertais: uma escavação no norte da Espanha revelou traços de Achillea millefollium que indicariam o possível uso medicinal dessa planta. Apesar do debate a respeito da descoberta, datada de aproximadamente 50.000 a.C., é forte a probabilidade que nossa relação com as plantas medicinais tenha uma longa história. Mas por que conhecer plantas medicinais é importante em um mundo repleto de medicamentos, frutos de alta tecnologia?

Em primeiro lugar, os medicamentos que hoje merecem estudos e desenvolvimento pela indústria farmacêutica vieram da observação e das experiências feitas pelo ser humano durante sua história de relacionamento com as plantas medicinais. O saber popular sobre elas ainda é fonte de pesquisas médicas em fitoterapia, embora a esse conhecimento nem sempre se dê o crédito devido.

Além disso, essa relação gerou um saber valioso que extrapola o conhecimento científico, na medida em que faz parte de diferentes conceitos de saúde, doença e cura construídos em diversos contextos históricos. Conhecer a pluralidade de possibilidades de conservar e recuperar a saúde através de plantas medicinais sinaliza para a capacidade de escolhas do sujeito a respeito dos cuidados que pode tomar para estar saudável e para o seu empoderamento em relação ao próprio corpo.

Por fim, conhecer os usos atuais e históricos das plantas medicinais possibilita debater os motivos de nosso distanciamento (ao menos ao nível da ciência) de modelos integrais de compreensão do corpo humano para dar lugar a uma concepção cartesiana, que trabalha com dicotomias que não são satisfatórias para perceber a relação entre o ser humano e o meio (interno e externo) ao qual ele pertence.

Objetivos

  • Reconhecer o uso atual e pretérito de diferentes plantas medicinais, debatendo a respeito das diversas concepções de saúde e doença que as utilizaram.
  • Abordar o processo de construção da racionalidade científica cartesiana, que influenciou a medicina a se afastar das concepções integrais de saúde e doença.
  • Conhecer e identificar os usos de algumas plantas medicinais.
  • Estimular o uso consciente de plantas medicinais, sempre questionando a respeito de por que adoecemos: as plantas medicinais devem fazer parte de nosso processo de autoconhecimento e da promoção da saúde.
  • Contribuir para o restabelecimento de nossa relação, enquanto seres humanos, com as plantas (cuidar e ser cuidado).

Conteúdo mínimo

  • Primeiros indícios de uso de plantas medicinais por seres humanos.
  • Plantas medicinais e concepções de saúde e doença: medicina egípcia, medicina aiurvédica, medicina chinesa, medicina hipocrática, concepções médicas na Europa medieval e moderna, medicina indígena brasileira, medicina afro-brasileira (candomblé).
  • A ruptura na relação microcosmos (ser humano) e macrocosmos (ambiente): concepções de saúde e doença no final do período moderno e contemporâneo.
  • Uso atual de plantas medicinais: troca de saberes.

Metodologia

A exposição do conteúdo pode se dar de diferentes maneiras: slides de datashow, pranchas com fotos ou jogos lúdicos como o jogo de memória. O fundamental é que o público possa reconhecer as plantas medicinais que estão ligadas a diferentes racionalidades e que sejam capazes de perceber que seu uso atual não segue, necessariamente, a mesma lógica da utilização pelas diversas medicinas do passado. Algumas dessas racionalidades perduram hoje, e percebê-las favorece a ampliação de possibilidades de escolha por parte dos sujeitos. É importante, igualmente, permitir a troca de saberes sobre as plantas medicinais mais conhecidas pelo público, facilitando seu reconhecimento e esclarecendo a respeito de seus usos: o trabalho interdisciplinar é primordial nessa etapa da aula.

Exposição

120 min

A apresentação do conteúdo deve ser feita de forma reflexiva e dialogada, estimulando o público a reconhecer diferentes exemplares, que relacionamos às diversas concepções de saúde e doença de recortes espaçotemporais. Iniciamos com a abordagem das plantas utilizadas no período que se convencionou chamar “pré-história”, relatando as descobertas a respeito do uso da Achillea millefolium. Este é um momento de reflexão inicial, em que o público é convidado a perceber quão antiga e múltipla é nossa relação com as plantas medicinais e quão diverso é o saber acumulado sobre elas ao longo do tempo. Se for possível, leva-se um exemplar dessa planta, conhecida como mil-folhas, para reconhecimento e troca de saberes nesse momento.

Diálogo reflexivo sobre as plantas medicinais em grupo no Horto Didático de Plantas Medicinais do Hospital Universitário da UFSC. Foto: Jefferson Mota.

Na sequência, sempre através de imagens e questionamentos sobre o conhecimento dos usos de plantas relacionadas a contextos espaçotemporais diversos, apresentamos as concepções de uso de plantas medicinais que relacionavam, de alguma maneira, o ser humano (microcosmos) ao ambiente (macrocosmos):

Medicina egípcia

O Egito antigo foi unificado como Estado cerca de 3000 a.C. Seu principal tratado médico, o Papiro de Ebers, data de aproximadamente 1500 a.C. Nessa obra, é possível perceber que receitas de medicamentos e de alimentos se mesclavam, apontando para a impossível separação entre nutrição e saúde. Outro elemento presente na medicina do antigo Egito é a relação entre o ser humano e seus deuses: dentre as diferentes origens das doenças figurava a ação dos deuses, em especial da deusa Sekhmet, que agia através do sopro de seus emissários. Fugindo de concepções que opõem “bem” e “mal”, a mitologia egípcia estabelecia que a mesma deusa que causava a doença era capaz de curá-la através da ação dos médicos, que eram também seus sacerdotes. As plantas tinham, portanto, uma ação que extrapolava o efeito físico de suas substâncias. Algumas plantas medicinais: coentro (Coriandrum sativum), cominho (Cuminum cyminum) e babosa (Aloe vera).

Ayurveda

O Ayurveda, sistema médico nascido na Índia antiga, é de difícil datação. Porém, seus primeiros textos estão localizados cerca de 1500 a.C, com o estabelecimento dos Vedas, embora sua prática possa ser muito mais antiga. Os tratados mais conhecidos, o Characa Samhita e o Sushrura Samhita datam de cerca dos séculos I e II d.C. Esse sistema relaciona de forma bastante marcante o micro e o macrocosmo: ambas as dimensões são compostas por cinco elementos: ar, água, terra, fogo e éter. Esses elementos se combinam, dando origem aos doshas, Vata, Pitta e Kapha, responsáveis por todas as funções mentais e físicas do ser humano. A doença advém do desequilíbrio dos elementos no corpo-mente, que pode ser causado por diversos fatores que colocam em relação os mundos interno e externo ao ser humano. A saúde advém do reequilíbrio, que pode ser alcançado através da alimentação, atividade física, “higiene mental” e uso de terapias que empregam plantas medicinais. Algumas plantas medicinais: noz-moscada (Myristica fragrans), quebra-pedras (Phyllanthus niruri), cúrcuma (Curcuma longa).

Medicina chinesa

É difícil resumir as diversas transformações pelas quais passou a medicina chinesa até os nossos dias. A principal obra, o Huang Di Nei Jing, apresenta o diálogo entre o (mítico) Imperador Amarelo e seu ministro, datado de cerca de 2900 a.C. Porém, não é uma obra estanque no tempo, pois recebeu influências de diversas escolas filosóficas, entre elas o Confucionismo e o Daoísmo, que contribuíram com as teorias yin/yang e a teoria dos cinco movimentos, desenvolvidas entre os séculos II a.C e II d.C. A teoria dos cinco movimentos estabelece a existência dos elementos que compõem tanto o micro quanto o macrocosmo: água, metal, terra, fogo e madeira. A teoria yin/yang estabelece que o universo é uma dualidade não absoluta, que está em contínua transformação. Os polos yin e yang precisam um do outro para estabelecer a unidade e estão presentes em todos os processos. O ser humano é aquele que está entre céu (yang) e terra (yin) e é o microcosmo onde os elementos e a dialética entre yin e yang estão presentes. Para haver saúde, é preciso que esses elementos estejam em harmonia, que é constante movimento. Várias são as formas de conservar e estabelecer a saúde, como no Ayurveda: os medicamentos, que podem misturar plantas, animais e minerais, são só uma via. Algumas plantas medicinais: ginseng (Panax ginseng), gengibre (Zingiber officinale) e jujuba (Ziziphus jujuba).

Medicina hipocrática

Entre os séculos V e VI a.C, uma concepção de saúde e doença emergiu na Grécia antiga: a medicina hipocrática. Os escritos atribuídos a Hipócrates não podem ser relacionados a uma única pessoa, e seria mais correto falarmos em escola hipocrática, embora a existência desse personagem seja admitida por historiadores. O que fica evidente é que o pensamento emerge da filosofia grega de teor racionalista, que buscava a origem dos fenômenos em causas naturais e não exclusivamente na ação dos deuses. A medicina hipocrática estava baseada na teoria humoral: quatro humores ou líquidos eram predominantes no organismo humano e estavam relacionados a quatro elementos. A fleuma estava relacionada à água; o sangue, ao fogo; a bílis amarela, ao ar e a bílis negra à terra. Para haver saúde, os humores deveriam estar em seus lugares e em equilíbrio no organismo. Como os elementos também formavam o macrocosmo, vários aspectos eram observados ao se diagnosticar o desequilíbrio humoral: características físicas, psicológicas, atividades, estações do ano, alimentação… e a terapêutica, quando o desequilíbrio era constatado, poderia empregar plantas medicinais cujas características fossem antagônicas ao humor, a fim de restabelecer o equilíbrio. Algumas plantas medicinais: funcho (Foeniculum vulgare), sálvia (Salvia officinalis L.), papoula (Papaver somniferum).

Medicina medieval

O período entre o século V e XV na Europa é conhecido como Idade Média. Em relação à saúde e, em especial, às profissões a ela relacionadas, temos o início da diferenciação entre médicos (físicos), barbeiros, cirurgiões e farmacêuticos (boticários). Estes últimos foram muito influenciados pela medicina árabe e por sua acuidade matemática. Em relação às plantas medicinais, é importante ressaltar que seu conhecimento e seu uso não se restringiam aos profissionais de saúde, e isso cabe também aos demais contextos históricos explicados anteriormente. A base teórica para o emprego de ervas e outros medicamentos era a teoria humoral grega, que classificava as plantas em quentes, frias, secas e úmidas, relacionando-as ao micro e macrocosmo. Também o mundo natural era visto como espaço de ação de forças sobrenaturais que influenciavam, entre outros elementos, a saúde e as doenças. Essas ideias mágicas tinham base tanto no catolicismo quanto em concepções “pagãs”, criando sistemas bastante peculiares de interpretação da ação das plantas medicinais, como podemos observar nos escritos da monja Hildegard von Bingen (século XI). Algumas plantas medicinais: calêndula (Calendula officinalis), mandrágora (Mandragora officinarum) e tanchagem (Plantago major).

Medicina moderna

A partir do século XV e até o final do XVIII, a Europa viveu a época moderna, embora haja inúmeras discussões referentes a essa periodização. É um equívoco tratar todo esse espaço temporal como se fosse homogêneo: seu início é marcado por concepções de saúde e de doença que ainda relacionavam macro e microcosmo. Um exemplo disso são as obras de Paracelso (século XVI) e Nicholas Culpeper (século XVI), que ligavam o ser humano ao mundo natural, principalmente aos astros. A astrologia estava presente, para Culpeper e outros médicos, do diagnóstico à terapêutica, sendo atribuídos à regência de diferentes planetas as plantas medicinais e os órgãos humanos. Esse também é o contexto do aumento de fluxo de conhecimento entre Europa e outras regiões do mundo, como as Américas, da formação de jardins botânicos e, no final do período, da classificação botânica de Carl von Linné, signo do racionalismo advindo do método científico. Algumas plantas medicinais: tomilho (Thymus vulgaris), hortelã-pimenta (Mentha piperita), dente-de-leão (Taraxacum officinale).

Medicinas indígenas

Segundo o censo demográfico do IBGE de 2010, existem 305 etnias indígenas no Brasil: o dado mostra quão complexo é tentar unificar os diferentes sistemas médicos indígenas existentes no país e nas Américas de modo geral. Também é preciso lembrar que as fontes sobre os conhecimentos indígenas foram produzidas, em sua maioria, pelo colonizador, pelos padres jesuítas e por viajantes de origem europeia. Em linhas gerais, a cosmologia indígena não dissocia o mundo natural do sobrenatural ou invisível, percebendo uma unidade entre essa dimensão (natural/sobrenatural) e o social. O mundo é habitado por uma diversidade de seres, todos portadores de consciência, revelando uma aparência externa que esconde uma forma humana interna, visível apenas para os xamãs. A doença acontece quando há uma ruptura entre a unidade alma-corpo: ela antecipa a separação final, que ocorre com a morte. A cura se estabelece com a restauração dessa unidade e, a fim de promover esse restabelecimento, que é tanto individual quanto social, vários rituais são realizados sob a coordenação do xamã, promotor da mediação entre natural/sobrenatural e social. O conhecimento de plantas medicinais não se concentra na figura do xamã, mas é disseminado em toda a sociedade indígena. Algumas plantas medicinais: fáfia (Pfaffia paniculata), quina (Cinchona calisaya), ginseng americano (Panax quinquefolius).

Plantas medicinais utilizadas no candomblé: assim como a medicina indígena, as práticas de cura de nossos afrodescendentes foram e ainda são objeto de preconceito e estigmatização. O Brasil foi a maior nação escravista do “Novo Mundo”, recebendo um terço dos escravos trazidos para as Américas. Manifestações religiosas formadas a partir de matrizes africanas são símbolo de sua resistência cultural: no caso do candomblé, aqui tratado, a influência mais forte foi da cultura iorubá. Na África, as raízes do candomblé estavam no culto aos ancestrais e à terra. Uma vez que, no Brasil, houve a perda de laços com família, grupo étnico e território, o culto aos antepassados foi substituído pela relação das divindades (orixás) ligadas às forças da natureza ou a relações sociais. O candomblé estabelece uma concepção de cosmos que é quádrupla, colocando em relação orixás, seres humanos, natureza e mortos: a cada domínio corresponde um sacerdote. Em relação às plantas, sempre presente nos rituais, o babalossaim é o responsável, uma vez que é ele que exercia o culto a Ossaim, orixá das plantas. De modo geral, o elemento vegetal se relaciona com diferentes orixás e carrega o axé, a força invisível que mantém todas as coisas no universo. Como o candomblé concebe a unidade entre corpo e espírito, as plantas medicinais são usadas para problemas ligados a diferentes esferas da vida humana. Algumas plantas medicinais: boldo alumã (Vernonia condensata), arruda (Ruta graveolens), manjericão (Ocimum basilicum).

Para estimular a reflexão e o debate sobre o estado da biomedicina hoje, abordamos as transformações das concepções sobre saúde e doença após o século XVII, na Europa, com o desenvolvimento do método científico por Descartes (França, século XVII), que separa o objeto de estudo do observador; o Iluminismo (França, século XVIII), que estabelece um conhecimento “verdadeiro” possibilitado pela razão e a expansão da indústria farmacêutica. Nesse processo, as plantas medicinais passam a ser estudadas com o fim de extrair-lhes os princípios medicinais (século XIX), e a medicina se afasta das concepções holísticas de saúde e doença, direcionando-se ao estudo das partes e especializações e à busca da doença reificada no corpo do “paciente”. A reação ocorre após os anos 1960, com o questionamento das iatrogenias e da deterioração entre as relações médico-paciente, entre outros elementos que fazem parte da crise da biomedicina.

O debate final, antes do reconhecimento de algumas plantas medicinais, é direcionado para o questionamento da importância da autonomia e da autoconsciência do indivíduo, que deve buscar o médico/agente de saúde, quando necessário, não como um detentor soberano de conhecimento, mas como um parceiro que, de forma cooperativa, pode auxiliar na preservação/recuperação da saúde. O indivíduo que sofre deve perceber seu sofrimento como um processo global, que envolve também o meio: a busca pela saúde individual deve sempre considerar a saúde do planeta, restabelecendo, assim, a relação entre micro e macrocosmo.

Prática

60 min

É importante efetuar o reconhecimento das plantas medicinais em um espaço onde certa variedade de exemplares esteja presente. Realizamos essa tarefa, nas aulas de permacultura da UFSC, no Horto Didático de Plantas Medicinais do Hospital Universitário.

Apresentação das plantas medicinais em grupo no Horto Didático de Plantas Medicinais do Hospital Universitário da UFSC. Foto: Marcelo Venturi.

Conteúdo Complementar

Vídeos

Leitura

  • Consulte mais sobre plantas do Brasil no site Flora do Brasil, administrado pelo Instituto de Pesquisas Jardim Botânico do Rio de Janeiro.

Aula

Referências sugeridas

CAMARGO, Maria Thereza Lemos de Arruda. As plantas medicinais e o sagrado: a etnofarmacobotânica em uma revisão historiográfica da medicina popular no Brasil. São Paulo: Ícone, 2014.

CHEVALLIER, Andrew. The Encyclopedia of Medicinal Plants. New York: DK, 1996.

FRANCIA, Susan; STOBART, Anne. Critical Approaches to the History of Western Herbal Medicine. London: Bloomsbury, 2014.

GARRETA, Raphaële. Des simples à l’essentiel. Toulouse: Presses Universitaires du Mirail, 2007.

LORENZI, Harri; MATOS, F. J. Abreu. Plantas medicinais no Brasil: nativas e exóticas. Nova Odessa: Instituto Plantarum, 2008.

OLIVEIRA, Marília Flores Seixas de; OLIVEIRA, Orlando J. R. de. Na trilha do caboclo: cultura, saúde e natureza. Vitória da Conquista: UESB, 2007.

PORTER, Roy (org.). Medicina: a história da cura. Lisboa: Centralivros, 2002.

SIGOLO, Renata Palandri (org.). Plantas medicinais e os cuidados com a saúde: contando várias histórias. Florianópolis: NUPPe, 2015.

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