Hídrica

Atualizado em

Arthur Nanni

O aproveitamento de energia hídrica é muito antigo no Brasil. No passado imigrantes tocavam seus moinhos de farinha e serrarias com a força das águas, que hoje ainda podem ser vistas em locais preservados dessa história.

Atualmente, o uso mais lembrado da energia hídrica é a transformação do movimento das águas pela energia da gravidade em energia elétrica. O Brasil detém muitas usinas hidrelétricas de grande porte, que apesar de serem classificadas como utilizadoras de energias renováveis, são extremamente impactantes, tanto socialmente, quanto ambientalmente, devido ao seu modelo concentrado de geração que visa o atendimento a população, mas acima desse, o lucro de grandes corporações.

Mas não estamos aqui para referendar o problema, este já bem conhecido e bem escondido. Pretendemos falar de soluções de pequeno porte, que quando somadas, geram, além de energia, também sustentabilidade, autonomia e aumento de resiliência das pessoas e paisagens.

Neste item descreveremos os aproveitamentos da energia hidrelétrica em micro escala:

Micro aproveitamentos hídricos


👆🏼Entenda os Contextos fitoecológicos onde a técnica é adequada

A geração de energia hidrelétrica em pequena escala não é uma novidade. Pouco difundida, essa tecnologia segue sendo de difícil adoção em virtude da sua dificuldade operacional, o que muitas vezes inibe sua escolha, tornando-a acessível a poucas pessoas que podem bancar custos de aquisição, implantação e amortização do investimento ao longo do tempo.

Na permacultura, um gerador de energia elétrica é apenas um elemento na paisagem planejada, cuja principal função é a conversão de energia gravitacional por meio do fluxo das águas. Essa geração geralmente se utiliza de volumes significativos de água, o que não justificaria sua adoção na análise de elementos. Mas então, como agregar mais funções ao sistema de água que será utilizado para gerar esta energia? Ou melhor, como utilizar-se de outras energias no sistema, visto que a gravidade está presente no processo? Ou ainda, como atender outros elementos aproveitando-se da infraestrutura que será instalada para gerar, também, energia elétrica?

Foi pensando assim que descrevemos a seguir uma experiência que aproveita as energias das águas e da gravidade associando geração de energia, irrigação, oxigenação do açude e a disponibilização de pontos de serviço com alta pressão em um espaço de vida rural.

Características

Um sistema multifunção, constituído por um percurso sistematizado, que conduz os fluxos de pequenos cursos de água na paisagem e, que tem como objetivo primordial a geração de energia hidrelétrica, mas associa o aproveitamento destes fluxos acelerados pela gravidade para outros usos na paisagem planejada.

Necessidades

A técnica exige uma paisagem onde os volumes de águas sejam fartos, a topografia possua bons desníveis e os cursos d’água perpassem por um múltiplas zonas energéticas na paisagem planejada.

Em termos de materiais, o sistema de captação/condução/adução das águas exige a instalação de tubos com perfurações (filtro), mangueiras, conexões, registros, reservatórios e tubos. Já o sistema de geração, é composto de alternador, regulador de voltagem, carregador de baterias e inversores de voltagem. Por fim, no sistema de irrigação teremos ainda aspersores, mangueiras e registros.

Há necessidade de manutenção para manter as vazões regularizadas dentro do pretendido. No sistema de irrigação será necessária limpeza dos bicos dos aspersores e troca periódica das mangueiras de distribuição, que se ressecam com o tempo. A oxigenação das águas será “um brinde” da geração, pois será preciso destinar as águas que passam pela MCH para um corpo ou curso de água.

Funções

Aproveitar o potencial dos volumes e a ajuda da energia gravitacional para:

  • Irrigar culturas por gravidade;
  • Ter pontos de serviço com alta pressão;
  • Oxigenar águas de açudes de piscicultura;
  • Gerar de energia elétrica.

A tecnologia em detalhe

O sistema de micro aproveitamentos hídricos envolve a utilização dos volumes de águas que cortam a paisagem para gerar energia elétrica, oxigenar águas de açudes, irrigar e disponibilizar pontos de serviço em alta pressão. A descrição a seguir abordará cada uma dessas funções.

O percurso linear do sistema prevê a captação, estabilização (carga), condução forçada, geração de energia e desvios para outros, como mostra a figura a seguir.

Esquema de captação, condução (adução), estabilização (câmara de carga) e conduto forçado para geração de energia, irrigação, oxigenação e ponto de alta pressão no sítio Igatu. Ilustração de Arthur Nanni.

A captação no curso hídrico pode ser feita com tubulações facilmente encontradas nas lojas de materiais de construção como tubos de PVC de 100mm, que são perfurados para fazer uma filtragem de partículas grossas como galhos e grãos de areia.

Sugere-se que as perfurações sejam feitas com broca 3mm para uso direto das águas na turbina geradora. Caso seja instalada chave-boia na câmara de carga, é melhor usar uma broca de 1mm, ou mesmo, tubos geomecânicos de filtro com ranhuras com espessuras entre 0,75 e 1mm, para evitar a diminuição dos volumes em virtude da sujeira na chave-boia e, a consequente parada de entrada de água no sistema.

Captação com tubos geomecânicos de 100mm em 2m de comprimento e redução para mangueira de 50mm. No detalhe o tipo de tubo geomecânico de filtro. Foto de Arthur Nanni.

A condução das águas captadas deve ser feita por mangueiras ou tubos, sendo que geralmente as mangueiras são menos onerosas. No passado, canais paralelos aos cursos d’água venciam essa etapa, movendo os moinhos.

A partir da captação há duas opções de condução das águas, levar a mangueira no eixo do curso d’água e aproveitar o desnível do leito e eventuais quedas ou, instalar a mangueira em uma trilha ou acesso que permita conduzir a água por longa distância e pequeno desnível, até chegar a algum ponto mais declivoso no terreno, buscando potencializar a velocidade por meio de um conduto forçado. No sítio Igatu optou-se por fazer a adução das águas por uma trilha existente utilizada para a manutenção das captações de águas usadas para o consumo humano.

Antes de acessar o conduto forçado, é necessária a implantação de uma câmara de carga para estabilizar a pressão com uma coluna de água dentro do reservatório de 1000L. Essa estabilização evitará o colapso da mangueira de adução, que pode se fechar com a alta pressão. Caso sejam usados tubos para instalação hidráulica, que suportam altas pressões, essa caixa pode ser dispensada, porém, será perdido também, um ponto de exaustão de bolhas de ar, que são inerentes a fluidez das águas nas tubulações.

Na câmara de carga pode-se usar o excedente de águas (vertedouro) para irrigação por gravidade em encostas convexas, uma vez que já foi feito o transporte e a relocação de seus volumes, conferindo uma função adicional ao sistema. Caso não seja utilizada para esse fim, pode-se operar com uma chave-boia de alta vazão. É importante cuidar desse excedente, pois se a caixa extravasar, os volumes irão saturar os solos no entorno da caixa, podendo causar a instabilização e eventual ruptura do terreno.

A câmara de carga deve contar com saída lateral de alta vazão – 50mm ou mais – deixando-se alguns centímetros acima do fundo, para promover a decantação dos sedimentos. Uma flange no centro do fundo (32mm) pode ser instalada para termos uma saída de limpeza desses sedimentos. A próxima etapa da condução envolve o conduto forçado, constituído por um tubo de bitola de 50mm que seguirá até a geração e morro abaixo.

Dica: pode-se medir o desnível entre o ponto de geração e a câmara de carga utilizando-se mangueira de nível, dois bambus e fitas métricas de costura, registrando-se os intervalos em uma planilha e, posteriormente, somando-se esses intervalos para obtenção do desnível total. Esse valor ajudará a entender as capacidades de pressão e potencial de produção. Caso deseje, é possível instalar um manômetro na parte inferior da tubulação do conduto forçado.

Na base do conduto forçado, sugere-se a instalação de um “T” para distribuição das águas para outros fins, como a irrigação e disponibilização de pontos de alta pressão ao longo das demais zonas energéticas, como feito no sítio Igatu, atribuindo 4 funções ao sistema, aqui considerado como um elemento na paisagem planejada.

Trecho da adução na trilha, seguido da sua chegada na câmara de carga e a chegada do conduto forçado na micro central hidrelétrica (MCH). Ilustração de Arthur Nanni.

Ao chegar na geração, sugere-se a colocação de um registro que permitirá tanto a manutenção do sistema, desvio para o sistema de irrigação e para definição dos volumes que irão acionar a roda Pelton que moverá o alternador, que irá transformar a energia hidráulica promovida pelos volumes de fluxo estimulados pela gravidade, convertendo-os em energia elétrica.

Existem diferentes alternadores no mercado. No sistema que descrevemos, foi utilizado um com 3 fases em corrente alternada que produz cerca de 120V em sua capacidade máxima (vazão máxima). A geração produz ruídos de funcionamento pelo alternador, então, sugere-se a construção de uma caixa seca de proteção com paredes que sirvam de isolante acústico.

Micro central hidrelétrica (MCH) geral e detalhe da caixa seca. Ilustração de Arthur Nanni.

O alternador deve ser fixado em uma base de alvenaria, que chamamos de caixa molhada, onde fica a roda Pelton. Essa caixa deve contar com uma saída para as águas no seu fundo. No sistema descrito foi utilizado um tubo de 75mm branco. Esse tubo deve seguir para os corpos hídricos de destino, como no caso, um açude que depois retorna ao curso original onde foi captada a água em ponto mais elevado. Esse retorno ao açude colocará uma água mais oxigenada, auxiliando na piscicultura.

A partir da geração, temos de conduzir a energia convertida em elétrica para a penúltima etapa, o armário de armazenamento com baterias e a conversão da tensão para disponibilização no circuíto elétrico da casa. Essa etapa pode ser suprimida se desejar usar diretamente a energia que foi produzida, sendo necessário apenas a retificação da tensão.

No sítio Igatu optou-se pela adoção de um banco de baterias, que oferece uma autonomia maior e a estabilização da carga para ser utilizada em diferentes aplicações. Assim, ao chegarem no armário, as 3 fases em corrente alternada são retificadas para estarem entre 90V e 240V, que é a faixa de trabalho do carregador de baterias. Assim, temos uma segunda conversão de corrente alternada para contínua para poder carregar as baterias, que somam 180A/h em 24V.

Do carregador passa-se a energia em corrente contínua em 24V para um inversor que transformará a corrente em alternada novamente, para ser distribuída no circuíto de lâmpadas, modem e computador na casa (zona 0), como mostra a ilustração a seguir.

Detalhe dos itens para o carregamento, armazenamento, inversão e distribuição da energia no armário da MCH. Ilustração de Arthur Nanni.

É importante entender que esse é um microaproveitamento, pois a geração consome 1,25L/s de água para manter uma carga de aproximadamente 100W de consumo. Se houver maior disponibilidade de vazão e queda, outros valores de produção poderão ser alcançados, assim, a geração dependerá do contexto de cada paisagem.

O suporte a piscicultura se dá no processo de oxigenação do açude/tanque, pois, ao passar pela MCH em alta pressão, as águas são submetidas a um fluxo turbulento que agrega oxigênio e é lançado no açude.

Na irrigação fez-se uso de microaspersores instalados de ponta-cabeça sobre os canteiros redondos na zona 1. A alta pressão permite o acionamento destes microasperssores com a abertura de um registro, que ativa todas as linhas de irrigação que foram instaladas no alinhamento dos canteiros. Atualmente o sistema está desativado.

O ponto de alta pressão foi locado junto a oficina na zona 0, visando atender usos que exigem jatos de água, como limpeza de chão e veículos.

Sistema de irrigação e ponto de alta pressão na zona 1 do sítio Igatu. Ilustração de Arthur Nanni.

É importante ter em mente que esse é um microaproveitamento e que a geração de energia elétrica tem como objetivo primordial a autonomia de lâmpadas, um ponto para um computador e outro para o modem. O sistema tem permitido atravessar as noites – período de pico – e segue durante o dia e a noite carregando o banco de baterias para um novo ciclo de uso.

Verificação de aplicação

A técnica e a tecnologia social foram verificadas em outubro de 2025 no sítio Igatu em São Pedro de Alcântara/SC, onde funciona a unidade experimental do NEPerma/UFSC.

O sistema é frequentemente apresentado a estudantes de escolas e universidades, o que confere mais uma função, a pedagógica.

Theo Nanni apresentando a MCH a um grupo de estudantes da UFSC. Foto de Lucas Albuquerque do Nascimento.

Referências de suporte

Frizzo, A. Z. (2024). Estudo para implantação de um Micro Central Hidrelétrica (MCH) em uma propriedade privada no município de Bento Gonçalves/RS. https://repositorio.ucs.br/xmlui/handle/11338/13642 

How to Plan a Mini Hydro Power Project—Energypedia. (s. d.). Recuperado 12 de novembro de 2025, de https://energypedia.info/wiki/How_to_Plan_a_Mini_Hydro_Power_Project Leão, F. R. (2012). Dimensionamento de uma pequena barragem de terra para produção de energia hidrelétrica e irrigação em uma propriedade rural. https://repositorio.ueg.br/jspui//handle/riueg/4698