Permaculture for food security and sovereignty
Referência completa da obra que foi traduzida:
HOLMGREN, David. Permaculture for food security and sovereignty. Holmgren Design, Australia, 2014. https://holmgren.com.au/wp-content/uploads/2014/03/food-for-thought.pdf.
MONTEIRO, Yasmin El Kadri1
Submetido em 28abr2024. Aceito em 14jun2024.
Avaliado por Maria Francisca Santos Daussy e Clovis José Fernandes de Oliveira Jr.
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.14751291
Resumo: O presente artigo é uma tradução ao português do texto original escrito em inglês por David Holmgren. Uma versão resumida desse mesmo texto foi publicada primeiramente na revista PIP Magazine: Australian Permaculture em março de 2014. O autor articula diversos conceitos, ações e consequências que têm impactado a segurança e a soberania alimentar, bem como aponta para a permacultura como um importante sistema de princípios para a organização eficiente da alimentação contemporânea. Enquanto por um lado o sistema alimentar industrial resulta em uma lógica linear em que a produção, o processamento, a distribuição e o consumo de alimentos produzem desperdício material e energético em todas as etapas, o sistema alimentar com base nos princípios da permacultura promove ciclos em que prosperam a biodiversidade, a resiliência às adversidades, o acesso a alimentos orgânicos e o empoderamento de escolher o que plantar, coletar e comer.
Palavras-chave: permacultura; segurança alimentar; soberania alimentar; sistema alimentar.
Abstract: This article is a Portuguese translation of the original text written in English by David Holmgren. An abridged version of this same text was first published in PIP Magazine: Australian Permaculture in March 2014. The author articulates several concepts, actions and consequences that have impacted food security and sovereignty, as well as pointing to permaculture as an important system of principles for the efficient organization of contemporary eating. While on the one hand the industrial food system results in a linear logic in which the production, processing, distribution and consumption of food produces material and energy waste at all stages, the food system based on permaculture principles promotes cycles in which thrive the biodiversity, resilience to adversities, the access to organic food and empowerment of choosing what to plant, collect and eat.
Keywords: permaculture; food security; food sovereignty; food system.
A atual cadeia industrializada de produção/consumo de alimentos é a maior contribuidora para o impacto ambiental, incluindo as emissões de gases de efeito estufa, enquanto a segurança alimentar continua a ser a questão mais crítica para o bem-estar humano e a estabilidade social. A segurança alimentar é uma condição que “existe quando todas as pessoas, em todos os momentos, têm acesso físico e econômico a alimentos seguros, nutritivos e em quantidade, suficientes para satisfazer as suas necessidades nutricionais e preferências alimentares para uma vida ativa e saudável”2.
Ao longo do século XX, o sistema alimentar industrializado aumentou a produção mundial de alimentos e a capacidade de processamento, preservação e distribuição, acelerando a utilização direta e indireta de combustíveis fósseis em esgotamento e de reservas preciosas de rocha fosfática. No processo, degradou o solo e poluiu as águas, incluindo os mares. Os agrotóxicos aumentam as taxas de câncer, acumulam-se em peixes oceânicos e degradam os serviços ecológicos, incluindo a polinização por abelhas e outros insetos. Além das toxinas residuais, as desvantagens do sistema alimentar industrializado para a saúde, têm sido múltiplas. As perdas de vitaminas resultantes do armazenamento e do transporte prolongados e o declínio da densidade mineral resultante das monoculturas anuais, alimentadas por aplicações desequilibradas de fertilizantes em solos degradados, tem reduzido o valor nutricional dos alimentos. O processamento excessivo de alimentos e novos aditivos, como o amido de milho rico em frutose, resultaram numa epidemia de obesidade em muitos países e no aumento de doenças relacionadas com a dieta. O uso generalizado de antibióticos necessários para manter a produção animal intensiva tem contribuído para que bactérias resistentes a antibióticos surgissem em todos os lugares, desde no intestino humano até nos animais selvagens. A perda de antibióticos eficazes pode ser uma das grandes tragédias para a humanidade no século XXI. As tentativas de melhorar a grande ineficiência na alimentação das vacas com grãos e outros alimentos concentrados têm resultado na reciclagem de resíduos de matadouros de volta ao gado, resultando na doença da vaca louca e outras ameaças à saúde humana, à ética e ao bom senso. As recentes introduções de novas genéticas aos cultivos alimentares ameaçam uma nova onda de consequências nutricionais não intencionais, com as consequências ecológicas já estabelecidas.
Estas consequências não intencionais, tornaram-se agora o caminho comprovado para as empresas do agronegócio continuarem a desenvolver novos mercados com produtos que direcionam os problemas que elas já haviam criado. Esta forma de capitalismo de desastre é bem ilustrada pela resposta da multinacional Monsanto à propagação rápida e prevista de ervas daninhas resistentes ao glifosato presente no Roundup3. Os primeiros agricultores a produzir estas ervas daninhas resistentes tornaram-se a fonte involuntária das culturas geneticamente modificadas de Roundup Ready da Monsanto, que permitiram a pulverização direta de herbicidas sobre as culturas alimentares4.
Apesar destas consequências adversas, a capacidade da agricultura industrial produzir grandes excedentes tem sido real e os custos dos alimentos representam uma pequena proporção da renda da classe média global. Contudo, isso não se traduziu numa abundância de alimentos para todos devido às falhas do mercado em alimentar as pessoas em primeiro lugar. A alimentação e engorda do gado para manter e aumentar o consumo excessivo de carne, lacticínios e peixe pela crescente classe média global, engoliu grande parte da produção de cereais, legumes e sementes oleaginosas; um dos aspectos mais obscenos e desumanos do sistema alimentar global. A ascensão dos biocombustíveis, especialmente a partir do milho, adicionou insulto à injúria, com estudos que sugerem que a potencial procura por biocombustíveis para os automóveis da classe média global poderia superar os cerca de 5 bilhões sem acesso a carros, para o seu total abastecimento de alimentos. As culturas de exportação (para pagar as dívidas nacionais) têm ocupado grande parte das melhores terras agrícolas nos países pobres densamente povoados, cultivando culturas de luxo para abastecer os países ricos e as pessoas com mais alimentos e medicamentos do que deveriam consumir, bem como com roupas suficientes para 10 vidas. A degradação dos solos, as alterações climáticas, a guerra e a insegurança tem reduzido enormemente a capacidade das pessoas de se alimentarem de forma confiável. Me lembro de uma história de alguém que viajou pelo Sudão há 20 anos e observou que qualquer pessoa que tivesse dinheiro compraria ovo em pó importado da Europa. Questionados sobre por que não criavam galinhas, responderam que alguém com um fuzil M16 apareceria e diria: “essas são as minhas galinhas perdidas”.
Mais universalmente, a mudança do campo para a cidade por centenas de milhões de pessoas atraídas por melhores oportunidades econômicas (e impulsionadas pelas consequências da degradação da terra, do cerco de terras comuns e dos conflitos), tem aumentado enormemente a dependência ao rendimento monetário e aos subsídios governamentais para comprar alimentos. Dessas e de outras formas, o sistema econômico global não tem conseguido proporcionar segurança alimentar.
A insegurança alimentar também se manifesta nos países ricos de muitas formas surpreendentes. Na Austrália, o declínio da produção de alimentos no quintal desde a década de 1960 e a perda de relações comunitárias, reduziram as oportunidades de troca e seguro social decorrentes de trocas não-monetárias. Nas décadas seguintes, o aumento da vida em apartamentos e os quintais menores reduziram a capacidade de produção familiar de alimentos. Múltiplas gerações de salários, e mesmo de dependência da assistência social, deixaram muitos australianos sem sequer as “competências da pobreza”, incluindo o cultivo alimentar e a preservação da casa. Nas últimas décadas, os elevados níveis de endividamento tem feito com que todos os membros da família se deslocassem para o trabalho ou para a escola, deixando pouco tempo para o cultivo de alimentos, a criação e a preservação dos animais. O declínio do ato de cozinhar e armazenar alimentos em casa tem aumentado a dependência por estabelecimentos comerciais de alimentos que estão abertos 24 horas por dia, 7 dias por semana, tornando esse ato refém dos monopólios comerciais altamente dependente de transportes de longa distância. A busca constante por maior eficiência e lucros por parte das empresas alimentícias fez com que a logística Just In Time substituísse o armazém e o armazenamento nas lojas. As interrupções nas cadeias de abastecimento devido a catástrofes naturais ou econômicas criaram uma instantânea dependência de grandes populações da ajuda emergencial numa escala sem precedentes. Mesmo sem o pico petrolífero e as alterações climáticas, as perspectivas de inúmeras pessoas sofrerem de insegurança alimentar na Austrália aumentam inexoravelmente devido às disfunções da riqueza multigeracional. Eu me pergunto por que as pessoas se sentem tão confortáveis em confiar no Coles5como seu armário pessoal de comida.
A aplicação dos princípios da permacultura à produção de alimentos não muda apenas como produzimos alimentos, mas também as maneiras e os graus em que os armazenamos, preservamos, transportamos, distribuímos, preparamos e consumimos. Para além da mesa de jantar, o planejamento da permacultura reorganiza a cadeia de abastecimento alimentar para garantir que todos os resíduos, incluindo dejetos humanos, sejam reciclados em terras produtoras de alimentos. Estes ciclos fechados são muito mais fáceis e mais eficientes em termos energéticos quando organizados à escala doméstica e local. Ao priorizar a produção de alimentos na economia familiar, a permacultura reintroduz este aspecto frequentemente ignorado do debate sobre segurança alimentar. O cultivo de alimentos em casa aumenta a segurança alimentar de muitas maneiras que se sobrepõem e se autorreforçam.
Em primeiro lugar, é relativamente fácil produzir vegetais perecíveis, frutas e pequenos produtos pecuários utilizando métodos orgânicos que reciclam resíduos domésticos e locais. Estes alimentos podem não ser básicos, mas reduzem a conta alimentar, diversificam a dieta e melhoram a saúde de todos, tanto na produção como no consumo. Eles também requerem mais fertilidade e água do que as culturas básicas. O excedente de fertilidade é um subproduto natural dos assentamentos humanos, enquanto as grandes áreas de telhados e superfícies duras nos assentamentos modernos permitem a captação de água para apoiar a horticultura de alta produtividade. Os alimentos cultivados em casa proporcionam uma sensação de orgulho e suficiência, desenvolvem competências e confiança para serem ampliados se necessário, geram excedentes para preservação que aumentam as reservas alimentares das famílias, enquanto a oferta e a troca aumentam ainda mais o seu crédito com outras pessoas da comunidade. Estes processos ajudam a relançar as economias familiares e comunitárias que outrora eram o pano de fundo, em grande parte dado como certo, da economia monetária. A história nos mostra que sempre que a economia global monetária afunda, as economias familiares e comunitárias crescem rapidamente. Em países há muito tempo ricos como a Austrália, o desafio tem sido como construir as competências e a infraestrutura antes que condições econômicas terríveis exijam uma reconstrução dolorosa das economias familiares e comunitárias a partir de um patamar muito baixo.
Ao longo dos últimos trinta anos, a permacultura tem sido um fator importante nessa reconstrução, contra as tendências dominantes de declínio da produção e da resiliência das famílias. Embora a modernização de quintais suburbanos para a produção de alimentos tenha sido um tema importante da prática, do planejamento e do ativismo da permacultura, estas atividades não têm se limitado ao domínio privado. A permacultura tem sido um importante agente de influência positiva no crescimento de hortas comunitárias e escolares e de fazendas urbanas, nas plantações públicas de árvores alimentícias e na reintrodução de animais pequenos e até de animais maiores em ambientes urbanos para nos reconectar com a natureza, ao mesmo tempo que fornece alternativas às máquinas e aos herbicidas no manejo da vegetação. Os praticantes da permacultura foram pioneiros em muitos destes projetos na onda ambiental do final dos anos 1970, mas depois da cultura “a ganância é boa” do início dos anos 80, a segunda onda do início dos anos 90 estava mais focada na construção energeticamente eficiente e na tecnologia de energia renovável. A biologia ficou em segundo plano, com exceção do reflorestamento indígena. Esse período estabeleceu o padrão para a sustentabilidade dominante que em grande parte ignorou a agricultura, a alimentação e a potencial contribuição da agricultura urbana. Uma menção de dois parágrafos aos alimentos no plano de sustentabilidade urbana de Adelaide no final da década de 19906 foi um sinal de que a longa negligência dominante aos alimentos poderia estar chegando ao fim.
Entretanto, na Austrália rural, a geração pioneira de agricultores biológicos estava finalmente obtendo reconhecimento e preços premium através do mecanismo de certificação biológica que dava segurança de qualidade àqueles que valorizavam a diferença e podiam pagar pelo premium. Embora o marketing orgânico tenha inicialmente estimulado um novo tipo de distribuição de alimentos saudáveis, os supermercados rapidamente entraram em ação, contratando grandes produtores orgânicos, impondo-lhes a mesma produção especializada (monocultura) e logística que aplicam aos produtores convencionais.
Os pequenos produtores e os consumidores orgânicos responderam com feiras de agricultores, esquema de cestas e a sua evolução para a Comunidade que Sustenta a Agricultura (CSA), que melhoraram os retornos para os agricultores, reduziram os preços aos consumidores e construíram conexões que melhoraram a segurança alimentar de todos, incluindo os agricultores que trocaram as sobras da produção com outros produtores no final do dia.
Nos últimos dez anos, a preocupação com a epidemia de obesidade tem tido um forte foco no cultivo, na preparação e no consumo de alimentos nas escolas. A maioria das pessoas empregadas para projetar, organizar e administrar esses jardins foram influenciadas pelo planejamento da permacultura e muitos fizeram Cursos de Design em Permacultura (PDC), que está gradualmente se tornando uma qualificação reconhecida nessa área de trabalho.
Ao mesmo tempo, a profissão de planejador alcançou o interesse público e as hortas comunitárias e a agricultura urbana voltaram à moda. Os “nerds” da política de sustentabilidade percebem agora que a cadeia de abastecimento alimentar, do pasto ao prato e até aos aterros sanitários e ao tratamento de esgoto, é de longe a maior contribuinte para as emissões de gases de efeito estufa, a má utilização da água e a pegada ecológica da sociedade. As prioridades políticas anteriores, que ignoravam o sistema de abastecimento alimentar, foram pensadas olhando-se para setores econômicos como transportes, produção de eletricidade, indústria, agricultura, etc., sem perguntar o que estas atividades econômicas e infraestrutura estariam produzindo.
O último defensor ignorante das contribuições dos combustíveis fósseis e dos alimentos convencionais para moldar a natureza e as vulnerabilidades de toda a economia é a própria economia dominante, em grande parte porque esses fatores de produção têm sido muito baratos.
Entretanto, a reação pública às consequências adversas do sistema alimentar industrial estimulou ainda mais o interesse pela agricultura orgânica, pelas feiras, pelo comércio justo, pela agricultura urbana e jardinagem, WWOOFing7 e pela colheita selvagem e pela coleta de resíduos do sistema alimentar industrial. Para muitas pessoas, a permacultura é o sistema de planejamento e estilo de vida que reúne estes interesses numa abordagem integrada, que vai além do conceito de segurança alimentar para um conceito de “soberania alimentar”, no qual as comunidades têm controle sobre sua produção e seu consumo de alimentos para benefício mútuo de ambos produtores e consumidores. A reconstrução do sistema alimentar a nível familiar é o cerne que gera naturalmente esse conceito mais amplo, porque os produtores e os consumidores estão unidos pelos laços íntimos e pela reciprocidade entre seus familiares.
A soberania alimentar refere-se ao direito de produzir alimentos no seu próprio território. Originou-se da Via Campesina8 nos países de segundo e terceiro mundo em 1996, em resposta à colonização do conceito de segurança alimentar pela agricultura industrial controlada por empresas, entregando os seus excedentes subsidiados publicamente às pessoas famintas em regiões afetadas por crises humanitárias, e através do comércio livre globalizado, destruindo sistemas locais de abastecimento alimentar. A soberania alimentar foi posteriormente assumida por Permacultores australianos e “ativistas da alimentação justa”9 refletindo a aplicação passada do conceito de segurança alimentar no contexto australiano.
A visão da permacultura sobre a segurança e soberania alimentar é a de comunidades cheias de hortas, despensas cheias de conservas e sementes prontas para serem colocadas em canteiros irrigados pela água coletada da chuva e fertilizados pelos resíduos reciclados do disfuncional sistema alimentar industrial, muitas vezes por meio de pássaros que põem ovos e revolvem intensamente serrapilheira e linhas de agrofloresta (semelhantes aos ancestrais das galinhas, as aves selvagens do sudeste asiático). Estende-se às terras públicas com hortas comunitárias, pomares de árvores frutíferas e de castanhas, avenidas e florestas alimentares, rebanhos de cabras manejando ervas daninhas e convertendo o excedente de biomassa de nossos subúrbios frondosos em produtos lácteos, e sistemas rotativos de aves e suínos que cultivam os campos aráveis da agricultura urbana e periurbana.
A permacultura coloniza os espaços urbanos de maior densidade com canteiros que drenam água e jardins nos telhados, sistemas aquapônicos usando uma abundância de tanques, canos e bombas recuperados, e ocupa o espaço escuro e frio dos estacionamentos subterrâneos com contêineres reaproveitados, produzindo o deleite dos fungos que crescem em resíduos de madeira dos subúrbios arborizados. Essa visão da permacultura incorpora facilmente a necessidade de colher a exuberância de plantações passadas de grandes árvores perenes de rápido crescimento, para permitir que a luz solar sustente plantas alimentares mais produtivas, estufas anexas, vidros e painéis solares orientados ao sol. A abundância de madeira se torna material estrutural, combustível e forragem, e substratos fúngicos que sustentam a modernização dos subúrbios e super-subúrbios10 periurbanos na Austrália para atingirem seu potencial de tornar as paisagens agrícolas mais produtivas e bonitas.
Embora uma grande parte da ação continue a ser centrada em ecologias intensivamente cultivadas em jardins e fazendas, a visão da permacultura sempre envolveu a coleta de plantas e animais selvagens das margens dos nossos espaços cultivados e dos bens comuns mais amplos que uma vez foram a fonte de sustento dos povos indígenas e tradicionais. Especialmente em tempos de dificuldades, as espécies marginais, os espaços e os bens comuns têm sido um apoio resiliente que alimentou e curou as pessoas quando as colheitas fracassaram, quando ocorreram catástrofes naturais ou jogos de poder político e conflitos que privaram de direitos e deslocaram pessoas. Tem ocorrido um renascimento do interesse pelos alimentos silvestres, desde a comida do mato dos povos aborígines até os segredos culinários com plantas espontâneas comuns e animais selvagens trazidos pelos nossos antepassados europeus11, bem como aqueles conhecidos e utilizados pelos migrantes mais recentes da Ásia, América Latina e África. Na Austrália, muitos migrantes continuaram a coletar alimentos silvestres, não apenas para complementar o orçamento alimentar, mas também para manter ligações culturais, muito antes do funcho e da “horta” (vegetal grego verde e folhoso) estarem disponíveis nos supermercados. Hoje, os permacultores estão na vanguarda de uma explosão de interesse em coletar e cozinhar plantas espontâneas comestíveis comuns.12
As estratégias da permacultura para aumentar a segurança e soberania alimentar são centradas tanto na mudança dos nossos hábitos de consumo alimentar para o que pode ser facilmente cultivado localmente, abundante e especialmente subvalorizado ou até mesmo desprezado. Plantas espontâneas e animais selvagens muitas vezes têm uma reputação tão ruim, não apenas porque somos os “notórios pirralhos mimados e ricos” que podemos escolher entre as despensas de alimentos do mundo, mas porque os povos tradicionais sobreviveram comendo alimentos comuns e silvestres em tempos de dificuldades, e muitos que vivenciaram essas dificuldades ficaram com lembranças ruins relacionadas à comida que os sustentavam. As crianças da classe média, cuja fonte de proteína era principalmente o coelho durante a Grande Depressão13, fizeram com que a carne de coelho fosse considerada um alimento inferior; um legado que só desapareceu nas últimas décadas, à medida que aquela geração passou.
Em 1994, na costa de Amalfi, no sul de Itália, o meu filho Oliver subia avidamente nas velhas alfarrobeiras para recuperar deliciosas vagens de alfarroba que ninguém usava, porque nos disseram que, durante os tempos difíceis da Segunda Guerra Mundial, as pessoas eram sustentadas pela alfarroba, mas a chegada de tropas estadunidenses marcou o início dos bons tempos com a distribuição (pelas tropas invasoras) de chocolate e cigarros. No Arquipélago Gulag, o autor dissidente russo Alexander Solzhenitsyn, ilustrou as dificuldades do Gulag observando que eles tinham que comer urtigas para sobreviver. Tenho certeza de que Solzhenitsyn estava tendo uma experiência péssima na época, mas a sopa de urtiga é uma fonte deliciosa de nutrição mineral e vitamínica concentrada e, é uma planta espontânea que vale a pena coletar. Considero a abundância de urtigas saudáveis um bom sinal de solo fértil14, e as picadas durante a colheita como parte da experiência gastronômica e um lembrete do equilíbrio entre a dor e o prazer, e do equilíbrio entre a terra e as pessoas.
No Japão, o respeito pelas fontes silvestres de sustento é refletido no jardim, onde as pessoas aproveitam partes de plantas que os ocidentais sempre descartam, como as folhas e os talos das cenouras. Os tempos difíceis no Japão contribuíram, em vez de prejudicar, a visão das plantas espontâneas em tempos de prosperidade. A retenção e agora o ressurgimento do interesse nas coletas tradicionais, tanto nas fazendas como nas florestas do Japão rural, é um dos aspectos positivos num futuro de baixa energética15.
A coleta de alimentos selvagens suscita outra estratégia de segurança alimentar, a da recolha, que inclui coletar restos da produção comercial que um agricultor não pode usar ou vender. Os direitos de recolher fazem parte de uma longa tradição na Europa, que contribuiu para o sistema informal de segurança social através do qual os mais necessitados tinham acesso a alimentos que os mais favorecidos não utilizavam.16 Durante quase três décadas na Austrália, os permacultores têm sido coletores de alimentos, recolhendo frutos caídos que os suburbanos ricos não valorizam. Parte dessa coleta foi feita com permissão e incentivo, outras vezes sem. No processo, construímos uma cultura confiante de sobrevivência e prosperidade sem muito dinheiro, enquanto a maioria das pessoas continuava a dar seu dinheiro aos grandes supermercados. Ocasionalmente, éramos vítimas de tais ações, como um permacultor amigo meu, com uma horta altamente produtiva em Coburg17, no início da década de 1980, que encontrou uma mulher mais velha de origem mediterrânea colhendo todos os seus limões no jardim da frente. Quando ele sugeriu que ela deveria levar apenas alguns, a mulher disse “vocês, Anglos, não os valorizam nem os usam”. Sem dúvida essa era a experiência genérica dela. Hoje, os protocolos sobre a coleta dos excedentes suburbanos tornaram-se mais sofisticados e cooperativos, com grupos como Growing Abundance18 em Castlemaine19 conseguindo distribuir a produção excedente de árvores frutíferas de quintais pela comunidade para um número crescente de pessoas que valorizam e são capazes de processar, preservar e fermentar o excedente. O professor de permacultura e articulador de redes, Ian Lillington diz que a Growing Abundance está combinando os aspectos de desenvolvimento das hortas comunitárias, com as habilidades de horticultura dos produtores orgânicos comerciais e as preocupações com a alimentação justa de grupos como a Associação Australiana de Soberania Alimentar20 para aumentar a utilização e a valorização da produção de alimentos das famílias e comunidades existentes, como um caminho para melhorar a segurança e soberania alimentar.
Mas o fim mais selvagem da recolha da permacultura continua com a explosão do skipping (ou mergulho no lixo), onde o fluxo de resíduos de alimentos perfeitamente bons jogados fora pelo sistema alimentar industrial é interceptado, principalmente sem permissão, por jovens ativistas comprometidos em fazer o bem por obter algo grátis. Em muitos casos, o skipping envolve um jogo de gato e rato com guardas de segurança e expressa um protesto radical contra o sistema alimentar dominado pelas corporações que está destruindo o planeta. Da mesma forma que muitos permacultores na década de 1970 expressaram o seu desdém radical pela cultura de consumo, comprando as suas roupas em bazares, e ao longo da vida poupando dezenas de milhares de dólares, os jovens permacultores de hoje alargaram o boicote à loucura do consumo por meio de uma combinação de skipping, cultivo e fermentação de alimentos, juntamente com compras selecionadas em feiras de agricultores e produtores orgânicos. Em vez de comer junk food21 de graça, a maioria dos que praticam skipping que conheço, restringe sua ingestão a produtos certificados organicamente.
O aspecto chocante dessas ações é o fato de pessoas da classe média, capacitadas e capazes, escolherem agir de forma associada aos mais necessitados. Uma narrativa contada por um amigo estadunidense muito capaz, que vive com US$ 500 por ano, destaca a diferença. Um dia, enquanto trabalhava nas lixeiras em busca de comida, ele conversou com um homem negro que também vasculhava as lixeiras. O que você está procurando? Latas, responde o homem. O que você faz com as latas? Vendo, responde o homem. O que você faz com o dinheiro? Compro comida, responde o homem, enquanto meu amigo recolhe comida perfeitamente boa em embalagens lacradas das lixeiras. A trágica necessidade dos desamparados de manter a dignidade através da participação na economia monetária contrasta com o empoderamento radical dos agentes de mudança que condensaram num único ato a ação contra o sistema, o bem-estar pessoal e a subsistência.
Cada vez mais, o escândalo do desperdício alimentar no sistema industrial, está de certa forma atenuado pelo desvio desse desperdício através da assistência social convencional, o que facilitou o declínio da reputação das empresas do setor alimentício. Esses esquemas parecem ter mais substância e ética do que as campanhas das empresas de alimentos para mostrar como são amigos dos agricultores, uma vez que continuam a reduzir os retornos aos produtores e a dar preferência a grandes produtores empresariais com contratos de fornecimento rigorosos. No entanto, a grande diferença entre o skipping e a redistribuição assistencial é que o primeiro cria uma cultura de responsabilidade pessoal fortalecida, enquanto a segunda simplesmente reforça a cultura de dependência da autoridade, que quando a situação se torna difícil, não conseguirá fornecer os bens e muito menos manter a dignidade humana diante das graves ameaças ao sistema de abastecimento alimentar.
A questão que ocorre a muitos quando consideram esta explosão marginal do cultivo de alimentos nas casas e na economia paralela, sem mencionar a coleta selvagem e o skipping, é: Isso prejudica o mercado para os produtores comerciais sérios, na sua maioria orgânicos, que tentam ganhar a vida fornecendo àqueles na sociedade que não confiam no sistema alimentar industrial dominado pelas corporações? Até certo ponto, estas redes informais competem com os melhores estabelecimentos comerciais pequenos, as feiras de agricultores e as CSA, mas em outros aspectos são complementares e se apoiam mutuamente.
Por exemplo, as pessoas que têm alguma experiência no cultivo dos seus próprios alimentos compreendem que embora os alimentos saiam do solo e das árvores, são necessários planejamento, esforço e boa noção de tempo para ser um produtor eficaz e consistente. Essas pessoas são muitas vezes as melhores clientes para os pequenos produtores orgânicos que vendem nas feiras de agricultores e especialmente aqueles que usam cestas sazonais para atrair os clientes que possuem uma escolha ilimitada no sistema de mercado central, para uma alimentação sazonal que aceita os altos e baixos da abundância, diversidade e qualidade como parte da realidade de um sistema alimentar local e resiliente. Em 1991, argumentei que é provável que uma nação de jardineiros estivesse preparada para pagar um preço justo aos agricultores e apoiar políticas que favoreçam aqueles que produzem alimentos como meio de subsistência. Acredito que foi a desconexão da realidade do trabalho com a natureza que permitiu políticas que apoiam o fornecimento confiável durante todo o ano de junk food padronizado e barato, controlado por grandes empresas.
Na nossa própria experiência ao longo dos últimos dez anos, criando e gerindo um híbrido informal entre o esquema de cestas CSA, a partilha de produtos secos e a redistribuição do excedente familiar, temos visto uma rotatividade de clientes de cestas à medida que alguns se tornam produtores domésticos mais competentes e são substituídos por outros que querem ir além da compra selecionada em mercearias e feiras de agricultores locais. Ao mesmo tempo, compreendemos que os números que chegam às feiras de agricultores e às mercearias locais continuam aumentando, presumivelmente devido aos clientes que estão abandonando o hábito de ir ao Coles ou Woolworths22.
É a diversidade de produtores, mercados e trocas que garante mais resiliência na construção de um sistema paralelo de abastecimento alimentar que possa sobreviver aos rigores de um futuro de baixa energética, incluindo a possibilidade de que a replicação viral das estratégias e dos sistemas mais bem-sucedidos possa um dia substituir um sistema alimentar industrial cada vez mais centralizado e disfuncional. A permacultura oferece poderosos princípios de organização e estratégias que podemos aplicar nos nossos esforços para sobreviver e prosperar, cultivando por nós próprios, intercambiando excedentes, explorando a natureza e os resíduos, e apoiando os produtores às margens da economia formal. Não devemos hesitar em aproveitar os resíduos dos sistemas centralizados controlados pelas empresas e a abundância dos excedentes da natureza, enquanto nos concentramos na importante tarefa de desenvolver as competências dos produtores domésticos e do mercado local.
Agradecimentos
Agradeço à equipe do Holmgren Design e ao próprio David Holmgren por concederem autorização para realizar essa tradução.
1 – Nutricionista, Mestranda no programa de pós-graduação em Nutrição da Universidade Federal de Santa Catarina, yasmin_ekm@hotmail.com.
2 – Definição da FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura). Food Security Information for Action Practical Guides: An Introduction to the Basic Concepts of Food Security. 2008. Disponível em: https://www.fao.org/4/al936e/al936e00.pdf.
3 – O glifosato é um agrotóxico herbicida que faz parte dos ingredientes ativos do produto comercialmente conhecido como Roundup. A empresa que o apresentou ao mercado em 1974 foi a Monsanto, que manteve a patente até 2000. Fonte: BBC News Mundo.
4 – Tendo já levado a limites absurdos nos tribunais o conceito de direitos de propriedade intelectual, a Monsanto roubou efetivamente esses genes criados pelos agricultores sem compensação àqueles que fornecem os laboratórios agrícolas gratuitos para o próximo salto estratégico da corporação.
5 – Coles é uma grande rede de supermercados australiana
6 – Trabalho de um “ativista da permacultura” no departamento de planejamento da Austrália do Sul.
7 – Rede global de trabalhadores dispostos em fazendas orgânicas – WWOOF https://wwoof.net/.
8– A Via Campesina ou Movimento Camponês Internacional, com cerca de 150 organizações, “coordena organizações camponesas de pequenos e médios produtores, trabalhadores agrícolas, mulheres rurais e comunidades indígenas da Ásia, África, América e Europa”. http://viacampesina.org/en/.
9 – Consulte o site da AFSA. Plano alimentar para a população http://www.australianfoodsovereigntyalliance.org/peoples-‐food-‐plan / em resposta ao Plano Alimentar Nacional do governo federal.
10 – Os subúrbios na Austrália tem características bastante distintas do que conhecemos como subúrbio ou periferia no Brasil. Um subúrbio australiano é geralmente estabelecido a partir de uma lógica urbana de ocupação horizontal, com espaçamento entre as casas e áreas verdes, enquanto no Brasil a lógica urbana é vertical, com alta concentração de pessoas e em edifícios com pequenos apartamentos.
11 – Os povos aborígines australianos são descendentes daqueles que habitavam primeiramente o que hoje conhecemos por Austrália, um território que começou a ser colonizado pela Grã-Bretanha em 1788. Atualmente os povos aborígenes representam apenas 3,8% da população australiana. Fonte: AUSTRALIAN INSTITUTE OF HEALTH AND WELFARE. Profile of First Nations people. 2023. Disponível em: https://www.aihw.gov.au/reports/australias-welfare/profile-of-indigenous-australians.
12 – Veja, por exemplo, “O manual do coletor de ervas daninhas: um guia para ervas daninhas comestíveis e medicinais na Austrália”, de Adam Grubb e Annie Raser Rowland, no site Eat That Weed. http://www.eatthatweed.com/
13 – A Grande Depressão, também conhecida como A Crise de 1929, foi uma crise econômica que afetou a economia mundial logo após a quebra da Bolsa de Valores de Nova York em 1929. Fonte: Brasil Escola
14 – As urtigas (Stachys arvensis L.) são plantas bioindicadoras de solos com elevado teor de nitrogênio e falta de cobre. Fonte: Embrapa.
15 – O autor, David Holmgren, apresenta uma abordagem integrada para compreender a interação entre as Alterações Climáticas e o Pico Petrolífero na produção de energia, utilizando um modelo de planejamento de cenários, disponível em Future Scenarios.
16 – Para uma exploração fantástica das expressões históricas e modernas da tradição, consulte “Os Gleaners e eu” (Les glaneurs et la glaneuse). Wikipedia.
17 – Coburg é um subúrbio em Melbourne, Victoria, Austrália, 8 km ao norte do Distrito Central de Melbourne.
19 – Castlemaine é uma cidade no centro-oeste de Victoria, Austrália, na região de Goldfields, a cerca de 120 quilômetros a noroeste por estrada de Melbourne e a cerca de 40 quilômetros do principal centro provincial de Bendigo.
20 – Australian Food Sovereignty Alliance.
21 – Junk food é uma expressão pejorativa para alimentos com alto teor calórico e baixa qualidade nutricional.
22 – Woolworths é outra grande rede de supermercados australiana