A permacultura como estratégia para recuperação e ressurgências de paisagens humanas e não humanas na era das mutações climáticas

Permaculture as a strategy for the recovery and resurgences of human and non-human landscapes in the age of climate mutations

Francisca Pereira dos Santos1
Submetido em 31mai2025. Aceito em 3dez2025
Revisão por Adriana Angelita Conceição e Arthur Nanni
DOI: https://doi.org/10.5281/zenodo.17956091

Resumo

Apresento nesse diálogo historiográfico, o contexto, os desdobramentos e as proposições que explicam a emergência da Permacultura. Destaco os processos sobre como ela se constituiu como design ecológico, teorias, tecnologias, sistemas, formas de comunicação, para regeneração de paisagens degradadas, humanas e não humanas. A década de 1970 é o pano de fundo da primeira bússola orientadora a nos guiar neste cenário marcado por movimentos da contracultura e ambientais; novas teorias, epistemes, abordagens e ontologias, questões políticas de classe, raça, gênero, meio ambiente, sexualidade, etc. A segunda bússola explica como se constituiu as bases da ideia de Bill Mollison, fundamentada na recuperação da informação epistemológica e ontológica de povos, da ciência e instituições diversas, com várias disciplinas e saberes em confluência. A terceira bússola traz as formas e as forças da permacultura, baseada em uma ética e princípios, até chegarmos na reflexão de quanto precisamos de novas bússolas, no contexto das mutações. Por fim, na quarta bússola, o objetivo é confirmar a importância da permacultura como “ferramenta” de transformação sociobiocultural, estratégia educativa para educar comunidades prósperas e regeneradas e, em especial, mostrar como ela se reinventa na atualidade ante o Novo Regime Climático.

Palavras-chave: permacultura, crise civilizatória, crise cultural, mutações climáticas

Abstract

In this historiographical dialogue, I present the context, developments and propositions aiming to explain the emergence of Permaculture. I highlight the processes that constituted it as ecological design, including theories, technologies, systems, forms of communication, to regenerate human and non-human degraded landscapes. The 1970s is the backdrop for the first compass to guide us in this scenario marked by counterculture and environmental movements; new theories, epistemic, approaches and ontologies, political issues of class, race, gender, environment, sexuality, etc. The second compass explains how the foundations of Bill Mollison’s idea were formed, based on the recovery of epistemological and ontological information from people, science and diverse institutions, with confluence of disciplines and knowledge. The third compass brings the forms and forces of permaculture, based on ethics and principles, until we arrive at the reflection of how much we need new compasses, in the context of mutations. Finally, in the fourth compass, the objective is to confirm the importance of permaculture as a “tool” for sociobiocultural transformation, an educational strategy to educate prosperous and regenerated communities and reveal how updates reinvents itself considering the New Climatic Regime.

Keywords: permaculture, civilization crisis, cultural crisis, climatic mutations

Bússola 1: os contextos da crise cultural e ambiental

A década de 1970 é o pano de fundo da bússola orientadora (Figura 1) a nos guiar nesta análise. Atravessam e se estabelecem nesse cenário vários movimentos, como os aqui elencados: os da contracultura, liderados por movimento de mulheres, negros, punk, indígenas, LGBTQIAPN+ e, os ambientais, que denunciam a degradação dos recursos naturais, desencadeando várias frentes de ativismo e contestação ao status quo; novas teorias, epistemes, abordagens e ontologias vindas da academia e dos movimentos autóctones e, para o tema em tela: as presenças dos agentes políticos Bill Mollison e David Holmgren, nesse contexto. Trata-se de uma década paradigmática em que todas as esferas da sociedade humana foram atravessadas por duas brutais guerras mundiais, destruições em grande escala dos ecossistemas – humanos e não humanos, e implementação, no pós-guerra, de políticas desenvolvimentistas como a “revolução verde”, entre outros.

Esta “revolução” cuja missão seria acabar com a fome, além de não reverter este problema social, criou outros, ao contaminar os sistemas alimentares com uma agricultura de monocultura baseada em pesticidas, erosão dos solos, assoreamento de rios, aumento da perda da biodiversidade, sementes geneticamente modificadas, aumento do êxodo rural, desmatamento para criação de pastos, entre outras mazelas relacionadas ao setor primário da economia.

Mesmo assim, com tantos dados negativos à vida no planeta, ainda teve quem comemorasse e se beneficiasse dessa política “esverdeada”, como o agronegócio, que entre todas as perturbações ambientais já citadas, mantiveram com grande destaque a ampliação e o fortalecimento das monoculturas com o uso de agrotóxicos. O “agro” vai se tornar “uma força internacional, presente em cada rincão do planeta, afetando a vida das pessoas e dos locais onde se estabeleciam seus protocolos e procedimentos” (Ferreira-Neto, 2018, p. 51–52). Trata-se de uma espécie de reinvenção das plantations coloniais, atualizado, com novas tecnologias, que permitem observar processos de recolonização da terra e escravização de tudo que chamamos de natureza. Esta realidade degenerativa da “revolução verde” é amplamente denunciada desde 1962, por Rachel Carson, uma cientista e ecologista estadunidense, que publicou importante pesquisa, intitulada: Primavera Silenciosa (Carson, 2010), que é um marco no movimento ambientalista no mundo ao denunciar o uso de pesticidas como malignos à saúde humana e ao meio ambiente.

Figura 1: Bússola 1 com os contextos da década de 1970.

Movimento verde global: ambientalismos

Embora a Permacultura tenha emergido enquanto conceito ambientalista, no ano de 1978, David Holmgren afirma seu surgimento a partir da “primeira grande onda da moderna conscientização ambiental, após o relatório do Clube de Roma de 1972 e as crises do petróleo de 1973 e 1975” (Holmgren, 2013, p. 30). Este documento-relatório, publicado em 1972 pela cientista Donella Meadows (Sanson, 2022) , foi um marco paradigmático que explicou a emergência, naquele contexto, de que estávamos já imersos em uma “crise ambiental”. As conclusões desta pesquisa:

[…] teve o efeito de uma bomba. Pela primeira vez anunciou-se ao mundo os limites físicos do crescimento econômico. Sua conclusão é clara: a persistência do atual modelo de sociedade e o consequente esgotamento de recursos levaria inevitavelmente o mundo no século XXI a um dramático “crash”. No entanto, 50 anos depois, nada parece ter mudado (Sanson, 2022).

Segundo (Souza, 2020, p. 24), este relatório foi fundamental como uma das principais fontes “de referência que impulsionaram a formulação das diretivas da Permacultura”, bem como embasar politicamente e cientificamente os movimentos ambientais nesse cenário, a exemplo das lutas em defesa dos rios, Serpentine, Hoon, a bacia natural do Lago Pedder, rios Gordon e Franklin2, na Austrália. Esta pauta dos “recursos” hídricos ficou conhecida “como um dos maiores protestos cívicos da história da Austrália” (SOUZA, 2020, p. 22), com muitos desdobramentos nesse país, que vão desde as lutas políticas dos Aborígenes, até a criação do Greenpeace, Partido Verde, ONGs ambientais e a própria Permacultura. Segundo (Holmgren, 2017, p. 6):

Desde o final dos anos 60, o ambientalismo de oposição estava crescendo nos países afluentes. A inundação do Lago Pedder na Tasmania em 1972 é agora reconhecida como um dos marcos principais na emergência do movimento verde global.

David Holmgren diferencia duas maneiras de se fazer política na esfera chamada de “meio ambiente”: O “ambientalismo mainstream” e o “ambientalismo de oposição”. O primeiro se constitui e age no sentido do que passou a se chamar de “desenvolvimento sustentável”, defensor de um capitalismo verde dentro dos marcos do crescimento, e o segundo, por propor uma “ecologia profunda”, ou “ecologia política”, que implica(va) não em se desenvolver no sentido do “crescimento” já denunciado pelo relatório Meadows, mas em “descrescimento energético” e consumo consciente, o caso da Permacultura.

O ambientalismo mainstream se destaca nesse contexto com a promoção de eventos importantes como a Conferência das Nações Unidas sobre o Ambiente Humano, em 1972, criando o programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e a agenda ambiental global3. Eventos como a Comissão sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (CMMAD), em 1983, permitiram o surgimento de novos conceitos como o de desenvolvimento sustentável a partir dos dados da Comissão Brundtland, cujo relatório mais conhecido é intitulado “Nosso Futuro Comum”. Até aqui, por volta dos anos 80, parece ainda haver um interesse de governos e elite globalizada em falar de um mundo onde todos possam respirar. Trata-se de uma “onda de ambientalismo moderno (que) respondeu ao consenso científico sobre o aquecimento global com conceitos de sustentabilidade mainstream” (Holmgren, 2017, p. 4) que, segundo Holmgren,

[…] estavam sendo plantadas, focando em um futuro de “tecno estabilidade” para a humanidade refletindo o doce cenário final que o modelamento do Limits to Growth sugere ser possível através de políticas globais coordenadas com o objetivo de reduzir o crescimento do gasto de energia e recursos, poluição e população ao mesmo tempo que se aproveitam ao máximo da tecnologia para fazer a transição.

A Permacultura emerge nessa fase, na outra ponta, como ambientalismo de oposição, afetada por acontecimentos e lutas que já antecediam essa década, envolvendo degradações de ecossistemas e aumento das exclusões sociais e culturais, crises visíveis denunciadas pelo ativista Bill Mollison. Por volta de 1974, este australiano desenvolve pesquisas sobre agricultura sustentável com base “na policultura de árvores perenes, arbustos, ervas, vegetais, fungos e tubérculos” (Mollison & Slay, 1998), produzindo um programa ambiental, ainda marcadamente voltado para o manejo da terra, mas que aos poucos irá se ampliar para inserir outras áreas e se tornar uma cosmovisão sistêmica com inclusão de várias áreas do conhecimento como solução para as apresentadas “crises” daquele contexto.

Contudo, se esta primeira onda ambiental, que fez emergir a Permacultura em 1978, era uma onda revolucionária, a segunda onda, vem logo após o “crescimento econômico da revolução Reagan-Thatcher nas nações ricas durante os anos 1980” (Holmgren, 2013, p. 30) através do surgimento do neoliberalismo. Este, é liderado pela ideia de livre mercado com intervenção mínima, e será defendida pelo que Holmgren chama de “Revolução Friedmanita”, orientada pelo economista Milton Friedman, conselheiro econômico de Ronald Reagan (presidente dos EUA de 1981 a 1989).

Segundo Holmgren, segue-se aí, a subida do neoliberalismo e as desregulamentações dos sindicatos, da economia do bem-estar social, redução de políticas públicas e um conjunto de perdas sociais que ficaram conhecidas como “terapia de choque”, que nem mesmo as sementes “tecno-estabilidade” do ambientalismo mainstrean relatadas acima por ele, tiveram vez. Afirma Holmgren (2017, p.4):

Tanto as perspectivas futuras da Tecno-Estabilidade quanto do Decrescimento Energético foram deixadas de lado durante a Revolução Friedmanita, que incluiu desregulamentação de mercados, privatizações, saques de recursos baratos em uma nova onda de neocolonialismo, e mais importante, uma expansão de crédito para incentivar o futuro “tecno-explosivo” de crescimento perpétuo.

A existência de um movimento mainstream, na primeira onda, parecia demonstrar uma certa preocupação com a questão ambiental e do já anunciado aquecimento global. Contudo, esse outro movimento, contrário a qualquer defesa da ecologia, da sustentabilidade e das reivindicações sociais, definiu a cena: os neoliberais negacionistas neocoloniais, não interessados na regeneração do planeta. Segundo Suely Rolnik esta nova realidade, é um tipo de versão contemporânea colonial-capitalístico, financeirizada, que

começa a se formar já na virada do século XIX para o século XX e intensifica-se após a Primeira Guerra Mundial, quando se internacionalizam os capitais; mas é a partir de meados dos anos 1970 que atinge seu pleno poder, afirmando-se contundentemente – e não por acaso após os movimentos micropolíticos que sacudiram o planeta nos anos 1960 e 1970. (Rolnik, 2021, p. 29).

Alexandre Costa, em sua aula nº 1 do curso de extensão em emergência climática4, cita as empresas petroleiras Exxon, Shell e Texaco, como aquelas que iniciam no ano de 1989 o negacionismo climático, que inclusive construiu um plano de ação contra a ciência do clima, no ano de 1998. Bruno Latour confirma que “desde os anos 1980, as classes dirigentes não pretendem mais liderar, mas se refugiar fora do mundo” (Latour, 2020, p. 10). Essa elite obscurantista, como ele chama, ignora e vai destruir, como diz Holmgren, os sonhos de uma tecno-estabilidade e o “desenvolvimento sustentável” do ambientalismo mainstream que acreditava que poderia conduzir uma política desenvolvimentista de crescimento, com o aval de todos, usando apenas paliativos de uma sustentabilidade que, no fundo, não se sustenta.

Pelo lado do “ambientalismo de oposição”, também houve “a doce ilusão que suas condições sociopolíticas de acesso e suas ciências permaneceriam fora da fratura colonial”, como ressalta (Ferdinand, 2022, p. 26). A fratura que este autor fala é a divisão entre os movimentos sociais, culturais e ambientais, que causou o que ele chama de “dupla fenda” colonial e ambiental e que

se destaca pela distância entre os movimentos ambientais e ecologistas, de um lado, e os movimentos pós-coloniais e antirracistas, de outro, os quais se manifestam nas ruas e nas universidades sem se comunicar (Ferdinand, 2022, p.23).

Em sua crítica decolonial, Malcon Ferdinand diz sobre “primavera silenciosa” que “a despeito de todas as qualidades literárias e políticas”, deste que é o “livro fundador” do ambientalismo nos Estados Unidos, notadamente “os perigos da poluição química causada pelo uso compulsivo de pesticidas estão totalmente desconectados das lutas dos Pretos estadunidenses pelos direitos civis em curso no momento de sua publicação” (Ferdinand, 2022, p. 145). Bruno Latour reforça essa fenda ressaltando que os dois campos – cultural e ambiental – atuaram como dois “conjuntos distintos” (Latour, 2020, p. 71).

Embora não fosse pauta dos movimentos sociais, o “meio ambiente”, segundo Malcolm Ferdinand, no Brasil a luta dos povos indígenas pelo território sempre representou essa relação com as lutas socioambientais. A fratura no discurso acadêmico e até entre os movimentos sociais, entretanto, existe e diz respeito a uma antiga separação (moderna) entre Natureza e Cultura, que “tomou forma no século XVIII em reação às destruições ambientais nas colônias sem se preocupar com as injustiças constitutivas do mundo colonial” (Ferdinand, 2022 p. 137). Superar essa fenda colonialista que dividiu cultura/natureza é uma das principais ações contemporâneas que a permacultura deve encarar como necessidade dessa Era Climática.

Bill Mollison e David Holmgren: agentes políticos

Gostaria de frisar nesse tópico, a importância das presenças dos principais agentes políticos na constituição da Permacultura: Bill Mollison e David Holmgren, como criadores e aglutinadores, movidos por seus ativismos. A Permacultura não foi algo que surgiu do acaso. Ela é tanto produto dos acontecimentos políticos – que envolve movimentos, relatórios, encontros, conferências, mas também, das verdades pragmáticas de um professor em sua percepção das transformações das paisagens do seu território e, do seu aluno, atento e ativo.

Bill Mollison relata sua trajetória como esse ator político integrado à sua geografia, vivendo uma vida na infância e juventude de “sonho” em que, aos poucos, ele vê transformar-se negativamente. Ele diz no prefácio:

Eu cresci em uma pequena vila na Tasmânia. Tudo do que precisávamos, fazíamos. Fazíamos nossas próprias botas, nossos artefatos de metal. Nós pescávamos nosso próprio peixe, produzíamos a comida e fazia pão. Eu não conhecia ninguém vivendo lá que tivesse só um trabalho, ou qualquer coisa que pudesse ser definida como emprego. Todos trabalhavam em várias coisas. Até aos 28 anos de idade, eu vivia uma espécie de sonho. Passava a maior parte do tempo no mato ou no mar. Pescava e caçava para ganhar a vida. Nos anos 50 eu comecei a perceber que grande parte dos sistemas naturais, dos quais eu vivia, estavam desaparecendo. Cardumes estavam diminuindo. As algas que cobriam a praia começavam a desaparecer. Grandes áreas de florestas estavam morrendo. Até então, eu não tinha me apercebido que esta natureza me era muito querida, que eu estava apaixonado por minha terra. (Mollison & Slay, 1998)

Mollison percebe, para além da destruição das formas de vida daquela sociedade, o quanto poderíamos estar aprendendo biomimeticamente com a “Natureza”. Diz ele em uma entrevista concedida a um dos seus alunos, Toby Hemenway5,

[…] que a ideia original da permacultura lhe ocorreu em 1959, enquanto observava marsupiais pastando nas florestas tropicais da Tasmânia, porque ele estava ‘inspirado e maravilhado com a abundância vivificante e a rica interconexão deste ecossistema’. Naquele momento, Mollison anotou as seguintes palavras em seu diário: ‘Acredito que poderíamos construir sistemas que funcionassem tão bem como este.’ (Hemenway, 2009, p. 5)6.

Como um indivíduo inter-relacionado com os membros de sua comunidade, um “homem”, branco, falando de dentro de sua “Cultura” local, Bill Mollison construiu suas ideias desde a observação do seu entorno, marcado por uma egrégora de luta e resistência dos aborígenes, no seu corpo-território. Ele estava presente na luta “para salvar o Lago Pedder”, destaca Holmgren, e “foi um dos protagonistas da campanha (…) e de outras campanhas ambientais quando eu o encontrei em 1974” (Holmgren, 2017, p. 3).

No auge do florescimento dessa tomada coletiva de consciência ambiental e de proteção das paisagens naturais, Bill Mollison (…) ocupava posição de professor de biogeografia na Universidade da Tasmânia, em Hobart. Contudo, seu interesse pela vida selvagem e pela agricultura natural, como o próprio relata em entrevistas, remete não à sua tardia formação acadêmica em biologia, mas à sua trajetória pessoal como habitante de uma pequena vila do noroeste da Tasmânia. A vila foi o lugar onde Mollison viveu grande parte de sua vida, como muitos de seus conterrâneos, realizando atividades sazonais, atuando com pesca marinha durante o verão e extração de madeira e caça durante o inverno”. (SOUZA, 2020, p. 23).

Foram os movimentos políticos ambientais e a referência em sua cultura, que nutriram Bill Mollison para constituir sua proposta com seu aluno, David Holmgren, que escreveria o trabalho de conclusão da Escola de Design Ecológico e lançariam, juntos, em 1978, a primeira obra intitulada Permaculture One. Muito tempo à frente, Stuart B. Hill, da Universidade de Western, Sydney NSW, Austrália, no prefácio da edição australiana do livro “Permacultura, princípios e caminhos além da sustentabilidade” (2013), de David Holmgren, realça os principais fatores que contribuíram para o desenvolvimento da Permacultura como design: “a sincronicidade e a colaboração” (Holmgren, 2013, p. 14) entre Bill Mollison e David Holmgren, que estabeleceram uma

visão da permacultura como um movimento internacional; o requisito de que instrutores tenham treinamento extenso e experiência de campo e que mantenham uma prática contínua para dar cursos; e a integração de princípios éticos e de design em todos os aspectos da teoria e da prática” (Holmgren, 2013, p.14).

No entanto, houve um afastamento entre os dois autores “que optaram por caminhos distintos e aparentemente não cultivaram mais uma relação de proximidade após a publicação do primeiro livro juntos, em 1978” (Ferreira-Neto, 2018, p. 136). Esse fato, no entanto, não respingou na Permacultura, não sendo este afastamento observado como algo negativo, uma vez que ambos permaneceram com a mesma pauta, divulgando, cada um ao seu modo, a permacultura.

Bússola 2 – Recuperando e ressignificando epistemologias e ontologias: montando o design

Como parte dessa bússola que nos guia nessa jornada, destaco um conjunto de epistemes, teorias e abordagens que a Permacultura acessa, recupera e ressignifica para montar o seu design. São práticas ecológicas e sistêmicas que já existiam na Escola de Design Ecológico na Tasmânia, outras espalhadas em universidades estrangeiras, com pesquisas em áreas da educação, economia, saúde, arquitetura, etc., bem como ontologias extra-acadêmicas, a exemplo dos aborígenes australianos, os nativos ancestrais, habitantes de um lugar pelo qual Bill Mollison era tão “apaixonado”. Sobre estes primeiros povos australianos o antropólogo Philipe Descola (Descola, 2016, p. 19–20) descreve-os da seguinte maneira:

embora estejam divididos em centenas de tribos que falam línguas diferentes, todos os aborígenes australianos têm em comum o fato de organizar segundo um mesmo sistema de grupos totêmicos cujas regras de composição são idênticas em toda parte. (…) A despeito da diferença de forma, eles possuem as mesmas características que derivariam do totem – habitualmente representado por um animal que dá nome ao grupo totêmico. Mas o totem não é de fato um ancestral, ele é antes um protótipo. Mas, afinal, o que vem a ser um protótipo? É um molde que serve para fazer cópias idênticas, só que, nesse caso, não se trata de um molde que reproduz formas exatas como faria uma fôrma de bolo, mas sim um molde que reproduz qualidades, um pouco à maneira do código genético que transmite características físicas de pais para filhos.

Na representação que simboliza a Permacultura, a flor com sete grandes áreas do conhecimento, modula as tecnologias como se fossem a representação desta flor, um grupo totêmico. A Figura 2 representada é quem dá existência aos agrupamentos de saberes, como um molde que embora pareça que é igual, na verdade, é a diferença de cada experiência. Na constituição do seu totem, a Permacultura dialoga com vários movimentos, tecnologias, ferramentas, metodologias, processos e conceitos, recuperando e dando visibilidade a muitas pesquisas e projetos sustentáveis – como os da agricultura biodinâmica de Rudolf Steiner, e a Escola Waldorf-, e os novos projetos, pensamentos e experimentos contemporâneos que se propõem a serem ecossistêmicos. Holmgren relata algo muito interessante, quando ele ainda nem tinha encontrado Mollison, em 1972, e ele depara-se com a Escola de Design Ambiental, fundada pelo arquiteto de Hobart Barry McNeil no Tasmanian College of Advanced Education (Faculdade da Tasmânia de Educação Avançada)”. Este autor nos informa que:

Environmental Design atraía todos os radicais e dissidentes das faculdades de arquitetura, planejamento e design pela Austrália. Energia renovável, materiais naturais, autoconstrução, design participativo, transporte público, ecologia e biodiversidade eram parte do que eu acredito ter sido o experimento mais radical de educação superior na Austrália (Holmgren, 2017, p.2).

Segundo ainda este autor, “na estrutura do Curso de Design de Permacultura desenvolvido mais tarde por Bill, o foco estava firmemente direcionado as soluções de design ecológico” (Holmgren, 2017, p.3) e parte deste programa era: “agricultura orgânica, energia alternativa, autossuficiência, comunidades intencionais e localismo cooperativo foram parte da mistura da qual surgiu a permacultura”, estas pautas, como já vimos, sendo objetos dessa Escola de Design Ambiental radical.

Em Hobart, na Austrália, convivem na mesma cena, além de Bill Mollison e David Holmgren, outros importantes ativistas e designers como o arquiteto, Barry McNeil, bem como outros criadores ecológicos como Percival Alfred Yeomans,

um inventor australiano e engenheiro de mineração. Em suas atividades se especializou-se em hidrologia e design de equipamentos, e ficou famoso por seu conceito de ‘keyline’, ou linha mestra, onde buscava os pontos principais para lidar com as águas de uma propriedade a partir do seu relevo. Ele se notabilizou como escritor, tendo escrito quatro livros sobre suas ideias e influenciado toda uma geração de agricultores e fazendeiros de todo mundo, entre eles, Bill Mollison e DavidHolmgren. (Ferreira Neto, 2018, p.75).

Nesse aspecto das influências e conexões, acho importante frisar o depoimento de Holmgren no seu discurso de doutorado honoris causa sobre as bases acadêmicas da Permacultura:

No nível conceitual, EF Schumacher (Small is Beautiful

[O Negócio é Ser Pequeno],1973) e Edward Goldsmith (Ecologist Magazine), Ian McHarg e Christopher Alexander, combinados com visionários do movimento da agricultura orgânica como FH King, Russel Smith, Albert Howard e outros. Mais importante, de acordo com a minha perspectiva, a primeira referência em Permaculture One foi ao Livro de Howard Odum, Power, Environment and Society (Energia, Ambiente e Sociedade) de 1971 (Holmgren, 2017, p. 3).

E havia, também, outras “influências como a agricultura natural de Fukuoka” (Ferreira-Neto, 2018, p. 74–75)

um microbiólogo e agricultor japonês, famoso por seus métodos de cultivo chamados de agricultura natural, selvagem ou ‘método Fukuoka”, onde a observação e a relação com a natureza constituem-se como pilares centrais. Autor, entre vários livros, das obras ‘A Revolução de uma palha’ e ‘A Senda Natural do Cultivo’, neles apresenta suas propostas para uma forma de ‘plantio direto’ como sua forma particular de agricultura voltada às relações harmoniosas com a natureza”(Ferreira-Neto, 2018, p. 74–75).

Outra grande referência foi

Joseph Russel Smith, nascido nos Estados Unidos em 1874, em Virginia, foi um professor de geografia e precursor das chamadas agroflorestas, que são sistemas de produção alimentar que mimetizam ambientes florestais, mesclando preservação e produção, preservação de solos com cultivo de alimentos. Em 1929 publicou o livro ‘Tree Crops: a permanent agriculture’, cujo conceito de agricultura permanente teria inspirado David Holmgren e Bill Mollison durante suas pesquisas em busca de uma forma sustentável de agricultura. Infelizmente o livro, ainda hoje, não conta com tradução para o português, mesmo sendo um referencial antológico de todo o movimento ambientalista e da agricultura natural mundial”(Ferreira-Neto, 2018, p. 74–75).

A ecologia é a principal base científica da Permacultura, uma disciplina que nasce do intenso debate dos biólogos organísmicos, da teoria geral dos sistemas e cibernética, ao lado do design. Ambos os campos – ecologia e design-, constituem os principais pilares desse desenho no qual, segundo o próprio Holmgren, teria “uma dívida clara e especial para com o trabalho publicado pelo ecólogo americano Howard Odum” (Holmgren, 2013, p.28). Além da ecologia de Odum, sobressai-se nesse campo, a ecologia, “profunda”, uma abordagem concomitante à Permacultura formulada pelo filósofo Arne Naes, o qual segundo Capra destaca, é um conceito fundamental pois

não separa os seres humanos- nem separa qualquer outra coisa- do seu ambiente natural. Ela não reconhece o mundo como uma coleção de objetos isolados, mas como uma rede de fenômenos que são fundamentalmente interconectados e interdependentes. A ecologia profunda reconhece o valor intrínseco de todos os seres vivos e concebe os seres humanos apenas como um fio particular da teia da vida. (Capra & Luisi, 2014, p. 37).

Figura 2: Bússola 2 – conjunto de epistemes, teorias e abordagens que a Permacultura acessa.

A hipótese, e depois, teoria de Gaia, de James Lovelock e Lynn Margulis, é uma visão difundida na Permacultura, que apresenta, nessa perspectiva, uma Terra viva, que se autorregula e tem agência. Lovelock ressalta que,

Essa visão analítica da Terra como um sistema único, um sistema a que chamo de Gaia, é essencialmente fisiológica. Ela tem a ver com o funcionamento de todo o sistema, e não das partes separadas de um planeta arbitrariamente dividido em biosfera, atmosfera, litosfera e hidrosfera. Essas não são divisões reais da Terra, são esferas de influência habitadas por cientistas acadêmicos(J. Lovelock, 2006, p. 12).

Segundo (Latour, 2020, p. 162) “os organismos fazem seu ambiente, não se adaptam a ele”. O ambiente não é algo dado, simplesmente, ele é constituído por forças de agências coletivas, humanas e não humanas. A Terra está viva, afirmam (J. E. Lovelock & Tickell, 2006), em sua teoria de Gaia7, que trouxe a noção da Terra como um sistema em evolução, com vida autorreguladora. Apesar dessa teoria ter sido formulada na década de 1970,

Os cientistas só reconheceram a Terra como entidadeautorreguladora na Declaração de Amsterdam, em 2001, e muitos ainda agem como se o nosso planeta fosse uma enorme propriedade pública que possuímos e compartilhamos. Eles se aferram à sua visão dos séculos XIX e XX da Terra, ensinada na escola e universidade, de um planeta constituído de rocha inerte e morta, com vida abundante a bordo: passageiros na jornada desse planeta através do espaço e do tempo (Lovelock e Tickell, 2006, p. 18-19).

Notadamente, a teoria de Gaia fez uma reviravolta na forma como a ciência ocidental via o planeta Terra e de como ela hoje inspira importantes versões para novas epistemologias, assim como, diálogo com epistemologias que já apresentavam a Terra como um ser vivo em evolução.

Bússola 3 – formas e forças da permacultura

Para além das teorias, ontologias, abordagens, em que a Permacultura se relacionou para elaborar e sistematizar sua proposta, essa bússola (Figura 3) reforça sua contribuição, promove um diálogo multilateral com diversas áreas do conhecimento acadêmico para formalizar seu design. Nesse sentido são seus elementos formais: sua ética (cuidar de si, do outro e partilha justa), 4 eixos (água, energia, habitação e alimentação), tripé (ecologia, ética e design), princípios (observar e interagir, capte e armazene energia, obtenha um rendimento, aplique a autorregulação e aceite feedback, use e valorize recursos e serviços renováveis, evite o desperdício, planeje dos padrões aos detalhes, integre em vez de segregar, use soluções pequenas e lentas, use e valorize a diversidade, use os limites e valorize o marginal, use e responda à mudança com criatividade), regras, flor com 7 pétalas (manejo da terra e da natureza, espaço construído, ferramentas e tecnologias, educação e cultura, saúde e bem-estar espiritual, economia e finanças, posse da terra e governança comunitária), zonas (de 0 a 5) e setorizações como a energia externa, chuvas, ventos, poluição.

Esse conjunto de formas e forças esboça uma estrutura que organiza a ideia Permacultura, e as quais foram sendo divulgadas através de vários processos de comunicação, como criação de Institutos que se iniciaram em 1979; Cursos de Design em Permacultura (PDC), desde 1981; Convergências internacionais, desde 1984 (Souza, 2020, p. 28), e nacionais; Redes e publicações que permitiram promover a Permacultura como um movimento internacional, estilo de vida, resposta à crise ambiental que viu nascer na década de 70, entre outros. Ao estudarmos essa historiografia da Permacultura, vemos como a década de 1980 também foi intensa e um período de sistematizações e divulgação deste desenho ecológico/cultural, com formações através de cursos, editoração, documentários e entrevistas em TV, rádios, fundamentais para divulgarem as pesquisas sobre decrescimento energético, sistemas de partilha justa, economias circulares e solidárias, planejamento para assentamentos humanos, entre outros.


Figura 3: Bússola 3 – a contribuição da permacultura e seu diálogo multilateral.

Do outro lado da fratura ambiental, na macropolítica, no Brasil, é a década da redemocratização, fortalecimento e expansão do Movimento indígena organizado, pós-constituinte, avanço do movimento quilombola, maior atuação política do Movimento Negro. Destaca-se nessa década, a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) e da Central Única dos Trabalhadores (CUT), do Movimento dos Trabalhadores Sem-terra na luta pela reforma agrária e, o surgimento da aliança dos Povos da Floresta liderado pelo filho de nordestinos, Chico Mendes, em parceria com o indígena Ailton Krenak e comunidades originárias. É desse contexto a existência da ativista Marina Silva, que ao lado de Chico Mendes, no Acre, vem liderando e participando desse embate político – o que fez de Marina Silva uma liderança feminina no campo ambiental e cultural brasileiro.

Prelúdios da terceira onda

Em 1988, tem-se a criação do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC em inglês), instituído pelas Nações Unidas e Organização Meteorológica Mundial, com o objetivo de produzir relatórios sobre os impactos do clima. Este Painel tem publicado dados que deveriam deixar toda população de “cabelo em pé”, em total alerta, uma vez que estas informações comprovam e reafirmam o aumento da temperatura planetária. Além do próprio IPCC, outras ações resultaram importantes nessa área, como a criação de protocolos-, como os de Kioto, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), todos com vistas a limitar o aquecimento global em 1,5º C. Um dos integrantes do IPCC, o professor brasileiro, Alexandre Costa8 diz que,

Nós temos hoje uma quantidade de dióxido de carbono (CO2)na atmosfera que está acima de 400 ppm (partes por milhão), na faixa dos 415, 420 ppm, isso é equivalente a quase 50% do valor pré-industrial, do clima, daatmosfera pré-industrial. É um valor que, da última vez, que a Terra viu uma concentração tão alta de dióxido de carbono foi há cerca de 3,2 bilhões de anos, no momento que a gente chama de período quente do Plioceno médio. (…) Nós também podemos afirmar com alta dose de certeza que nós estamos marchando muito fortemente para ultrapassar o que seria o nível administrável de alteração climática, que é o patamar de 1,5° C.

Segundo Holmgren (2013, p.30), nos anos 90 “enquanto a nova tecnologia e a economia global dividiram a atenção, houve outra fase de consolidação”, da Permacultura. Ela segue fazendo seu trabalho de divulgação com as Conferências Internacionais em Permacultura- IPC, na Austrália (1990), nos EUA e Nova Zelândia (Souza, 2020), Nepal (1991), e Europa. Na América Latina, o Brasil é o primeiro a receber esse tipo de Conferência, em 2007 (IPC8). Do outro lado do ambientalismo governamental, apesar dos horrores da globalização e das políticas neoliberais, seguiram-se eventos como a Cúpula da Terra (Eco-92), as Conferências das Nações Unidas sobre as questões climáticas, que se iniciam em Berlim em 1995, entre outros processos que coloca em pauta o aquecimento global, sobretudo.

No mundo inteiro, veremos a criação dos Institutos de Permacultura, por volta dos anos 19979, os quais garantiram que uma primeira geração de permacultores se capacitasse10 através dos PDC. No Brasil, destacou-se, a integração da Permacultura em um programa governamental, no governo de FHC11, que investiu nos Institutos de Permacultura como política pública. Esse contexto foi rico nas reflexões críticas, sendo possível criar uma revista, em 1998 e, principalmente, uma articulação em rede, no ano 2000, e mais tarde, em 2003, uma rede de permacultores. Esse período permitiu maior popularização deste design no ciberespaço por volta de 2005.

Eventos importantes sucederam no campo da ecologia, como a constituição da Carta da Terra, em 2000, diversos encontros de Permacultura na África, no Oriente Médio e Cuba (2013 – IPC11), Argentina e muitas outras ações importantes que colocavam esse design na pauta. Holmgren ressalta que “por volta de 1999 estava tudo pronto para uma terceira onda de ambientalismo” (Holmgren, 2013, p.30), época em que ele esperava “que o interesse público” se voltasse “para a corrente dominante de muitas inovações da segunda onda” (idem), e nessa expectativa, ele publica, “Permacultura princípios e caminhos além da sustentabilidade” como um contributo para o que ele chamou de terceira onda do interesse público pelas questões ambientais e pela Permacultura.

Bússola 4 – a permacultura no contexto das mutações

Nesse século XXI tudo está mudando velozmente. Estamos vivendo a sociedade da informação, uma terceira revolução industrial, que concorre, entretanto, com o aumento da desigualdade social e o aceleramento dos processos climáticos. Os movimentos anticoloniais e decoloniais12, muitos deles liderados pelos povos indígenas, disparam, em um momento colonial grave, ao tempo que reemerge na cena uma extrema-direita negacionista que vira as costas para a realidade social impondo regimes neofascistas.

Por outro lado, muitos questionamentos vindos da própria academia, que problematiza a ciência moderna cartesiana e antropocêntrica, implicando revisar verdades absolutas, como o antropocentrismo, a razão, e outros valores que predominam em nossa cultura. Tudo isso nos impõe uma quarta bússola (Figura 4), que nos auxilie a olhar esse novo tempo por diferentes ângulos, relocalizar temas, epistemes, processo e perspectivas para a Permacultura. No novo contexto impõe-se uma revisão dos antigos valores das velhas oposições culturais, tais como, Natureza e Cultura, Sujeito-Objeto, Humanos e Não Humanos, Sustentabilidade e Regeneração, Fratura Colonial e Ambiental, entre outras dicotomias que desabam com a emergência do aquecimento global.


Figura 4: A bússola cosmopolítica em um mundo em mutação.

Então, se a década de 1970 impôs o debate sobre a crise ambiental e civilizatória, já não podemos falar da mesma, no contexto do século XXI. Segundo Bruno Latour,

infelizmente, falar de ‘crise’ seria ainda outro modo de nos tranquilizar, dizendo ‘isso vai passar’, a crise ‘logo estará superada’. Se fosse apenas uma crise! Se tivesse sido apenas uma crise! De acordo com os especialistas, melhor seria falar de uma ‘mutação (Latour, 2020, p.23).

Diante do grave quadro ambiental, sobretudo dos últimos 60 anos, foi possível, nos anos 1990, “o consenso científico a respeito das transformações em curso do regime termodinâmico do planeta” (Castro & Danowski, 2014, p. 15). Isso culmina na declaração de Paul Crutzen e Eugene Stoermer, no ano 2000, sobre a emergência da entrada em cena, desde a revolução industrial, de uma nova era geológica, chamada de Antropoceno. O Antropoceno13, segundo Bruno Latour é o “Novo Regime Climático”, e ele trata de uma época “em que os seres humanos se tornaram agentes geológicos e a Natureza, que julgávamos um mero cenário, subiu ao palco reivindicando seu papel de co-protagonista na trama, diz a filósofa Alyne Costa (Costa, 2021, p. 3). Importa dizer, entretanto, que o conceito de antropoceno é controverso e ainda não oficial pelo campo da geologia.

Trazer a Permacultura para a cena pública nesse Novo Regime Climático, é um desafio emergencial. A cena pública são as escolas, praças, clubes, universidades, bibliotecas, etc., em que esta possa ser aplicada e vivenciada. Aterrar na Permacultura como possibilidade e movimento geossocial, como agência de sustentação em modelos benevolentes de modos de existência pela vida, é preciso.

Conclusão

A caracterização da emergência da Permacultura, foi aqui contextualizada não somente pelo momento contracultural e do ambientalismo de oposição que emerge nos anos 1970, senão, como movimento inter-relacionado aos reflexos da contraofensiva contemporânea financeirizada e neoliberal do sistema capitalista, que tem justamente nessa década, o marco temporal para reafirmar seu novo regime. Se esta década foi emblemática em relação aos protestos e lutas contra as desigualdades em todos os âmbitos, foi também, o início de uma contra-reação reacionária e contra-revolucionária que teve maior magnitude e visibilidade na década de 1980-1990 a partir dos governos neoliberais de Reagan e Thatcher no “grande Norte”.

A Permacultura é um desses importantes movimentos reativos à “tomada de poder mundial pelo atual regime” (Rolnik, 2018, p.30). Apesar de que, como ambientalismo, sofreu e sofre, como a maioria dos movimentos da época, da fratura colonial e ambiental que a crítica decolonial explica pela separação dos dois maiores fronte da luta anticapitalista: o movimento ambiental e cultural. Nosso objetivo será romper com essa fratura uma vez que o Novo Regime Climático nos forçará a atravessar essas fronteiras no objetivo maior que será de combater essa onda catastrófica em que o planeta atravessa e que em menos de um século deslocou o que antes era uma crise ambiental-cultural para uma mutação climática. Precisamos de uma nova reação, bem maior do que a década de 60 e 70, e este desafio é gigante, seja devido ao negacionismo (climático, da ciência, etc.), pelo avanço do neoliberalismo e extrema-direita, como por estarmos vivendo em uma nova era, da informação, que permite, pelo uso do ciberespaço, compartilharmos a melhor informação, como também, fake news como estratégias de dominação. A permacultura, então, apresenta-se com um programa capaz de contribuir com este novo momento climático, trazendo para a cena as várias tecnologias sociais e ambientais, novas ontologias e movimentos sociais, como demonstra a experiência do Centro de pesquisa pela paz de Tamera, em Portugal, que tive a oportunidade de conhecer em 2011.

Referências

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Castro, E. V. de, & Danowski, D. (2014). Há mundo por vir? Ensaio sobre os medos e os fins. Florianópolis: Cultura e Barbárie; Instituto Socioambiental.

Costa, A. (2021). Da verdade inconveniente à suficiente: Cosmopolíticas do Antropoceno. Cognitio-Estudos: revista eletrônica de filosofia, 18(1), 37–49. https://doi.org/10.23925/1809-8428.2021v18i1p37-49

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Ferdinand, M. (2022). Uma ecologia decolonial (1o ed.). Ubu.

Ferreira-Neto, D. N. (2018). Uma alternativa para a sociedade: Caminhos e perspectivas da permacultura no Brasil.

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Holmgren, D. (2017). Permacultura: 4 décadas de educação, design e ação para um futuro próspero de decrescimento energético. Discurso de aceitação do Doutorado – CQU (Central Queensland University). https://permacultura.paginas.ufsc.br/files/2018/04/Discurso-Homgren-doutorado-CQU_-portugues.pdf

Latour, B. (2020). Onde aterrar?: Como se orientar politicamente no antropoceno. Bazar do Tempo Produções e Empreendimentos Culturais LTDA.

Lovelock, J. (2006). A vingança de gaia. Intrínseca.

Lovelock, J. E., & Tickell, C. (2006). The revenge of Gaia: Earth’s climate crisis and the fate of humanity. Basic Books.

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Rolnik, S. (2021). Esferas da insurreição: Notas para uma vida não cafetinada (2o ed.). n-1 edições.

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Souza, G. M. de. (2020). Envolver o que nos envolve: Permacultura e sítios ecológicos em paisagens multiespécies na Serra do Espinhaço. [Tese (Doutorado), Universidade Federal de Minas Gerais – Departamento de Antropologia e Arqueologia – Programa de Pós-Graduação em Antropologia]. https://repositorio.ufmg.br/handle/1843/45379

1 – Universidade Federal do Cariri – UFCA, francisca.fanka@ufca.edu.br

2 – Cf. National Museum of Australia. (2025). Franklin Dam and the Greens. https://www.nma.gov.au/defining-moments/resources/franklin-dam-greens

3 – United Nations. (s. d.). United Nations Conference on the Human Environment, Stockholm 1972. United Nations; United Nations. Recuperado em 3 de dezembro de 2025, de https://www.un.org/en/conferences/environment/stockholm1972

4 – COSTA, A. (2021) Live de Boas vindas – Curso de Extensão em Emergência Climática. Universidade Estadual do Ceará. Disponível no link: https://www.youtube.com/live/jKlA16-VDtw

5 – Toby Hemenway escreveu os livros: Gaia’s Garden: A Guide to Home-Scale Permaculture e The Permaculture City: Regenerative Design for Urban, Suburban, and Town Resilience. 

6 – Toby Hemenway. (2023). Em Wikipédia, a enciclopédia livre. https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Toby_Hemenway&oldid=65163790

7 – Teoria criada por James Lovelock e Lynn Margulis.

8 – Agência Eco Nordeste. (2022, julho 13). ‘Desigualdade e crise climática estão completamente juntas’, aponta Alexandre Costa. Eco Nordeste. https://agenciaeconordeste.com.br/clima/desigualdade-e-crise-climatica-estao-completamente-juntas-aponta-alexandre-costa/

9 – Confira os dados em Histórias da permacultura: as permaculturas ao longo do tempo

10 – Eu fiz o meu primeiro PDC no Instituto de permacultura do Cerrado – IPEC, em 2009, onde iniciei meu ativismo e pesquisas na área, abrindo em 2011 o Instituto de permacultura da caatinga- Aldeia da Luz.

11 – Programa novas fronteiras da cooperação para o desenvolvimento sustentável.

12 – “o anticolonialismo do Pós-Segunda Guerra Mundial é o primeiro polo que propõe uma abordagem soberanista e estatutária da decolonização”, segundo Malcon Ferdinand (2022, p. 198). No tocante à decolonialidade, o mesmo autor, ressalta: “inaugurado pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano e por um conjunto de pesquisadores da América Latina no início dos anos 1990, o pensamento decolonial constitui um terceiro polo que propõe uma crítica epistêmica da fratura colonial, ou seja, uma crítica das categorias de pensamento do mundo que foram impostas pela colonização das Américas” (Ferdinand, 2022, p. 199).

13 – O conceito de Antropoceno, contudo, não é um consenso, nem formalizado pela geologia. Outras nomenclaturas como Plantitioceno, Capitaloceno, Chthuluceno, Euroceno, entre outros, circulam, para apontar uma crítica ao mundo do Novo Regime Climático. Veja também “Um bilhão de antropocenos negros ou nenhum” Kathryn Yusoff (bazar do tempo, 2025).