Peripheral permaculture: counter-colonial and feminist reflections for a necessary debate
SARNO, Luciana N.1
Submetido em 30abr2024. Aceito em 6nov2024.
Revisão por Adriana Angelita da Conceição e Paulo Eduardo Rolim Campos
Resumo: O artigo discute a necessidade de uma abordagem permacultural periférica, contracolonial e feminista no Brasil, que valorize os saberes ancestrais e as perspectivas marginalizadas no protagonismo da construção do saber, na semiótica e promova justiça socioeconômica e ambiental. A permacultura hegemônica, muitas vezes, negligenciou a presença, no corpo, no convívio e na linguagem dos indivíduos produtores de saberes ancestrais, o que a permacultura periférica, decolonial e feminista busca superar, propondo uma abordagem mais inclusiva e contextualizada. Existem projetos vinculados às políticas públicas populares, em comunidades periféricas, integrando diversos atores, que valorizam o contexto global e sistêmico e caminham nessa direção. Algumas experiências concretas desta abordagem estão representadas nas ações do Instituto de Permacultura da Bahia. Palavras-chave: permacultura periférica, contracolonial, decolonialidade, feminismo, saberes ancestrais, pertencimento, justiça socioeconômica e ambiental. |
Abstract: The article discusses the need for a peripheral, Counter-Colonial, and feminist permaculture approach in Brazil that values ancestral knowledge and marginalized perspectives in the protagonism of knowledge construction, in semiotics, and promotes socioeconomic and environmental justice. Hegemonic permaculture has often neglected the presence, in the body, in the coexistence, and in the language of individuals who produce ancestral knowledge, which peripheral, decolonial, and feminist permaculture seeks to overcome by proposing a more inclusive and contextualized approach. There are projects linked to popular public policies in peripheral communities, integrating various actors, that value the global and systemic context and move in this direction. Some concrete experiences of this approach are represented in the actions of the Permaculture Institute of Bahia. Keywords: peripheral permaculture, decoloniality, feminism, ancestral knowledge, belonging, socioeconomic and environmental justice. |
Introdução
A permacultura, como abordagem holística para um planejamento sustentável, resiliente, tem raízes profundas na busca por harmonia entre seres humanos, ecossistemas e comunidades, uma construção de coexistência. No entanto, é imperativo que repensemos os conceitos que norteiam as práticas metodológicas de um campo hegemônico da permacultura no Brasil, com a intenção de torná-la mais inclusiva, consciente e pertinente para uma camada numerosa da sociedade que não aceita mais receita pronta, vinda de um saber rígido, narcísico. Neste artigo, exploro reflexivamente a necessidade de refundar a permacultura numa perspectiva política, focando em uma abordagem periférica, decolonial, contracolonial e feminista. Além disso, destaco a importância de resgatar não apenas os saberes ancestrais e promover a resiliência em nossa relação com o meio ambiente, mas abrir espaço para que encontremos a pedagogia de terreiro, de quilombo, de aldeia. É essencial que os sujeitos desses campos específicos apresentem a sua permacultura, a sua práxis, a sua cultura da permanência, sem a interferência imperativa de sujeitos alienígenas, que expropriam saberes e fazeres. Essa reinterpretação da permacultura não apenas valoriza as vozes marginalizadas, apagadas, menosprezadas, mas também reconhece a interconexão entre as práticas sustentáveis e a justiça social, criando um espaço onde todos possam contribuir para um futuro mais equitativo, sustentável e resiliente.
Contexto
A permacultura, muitas vezes, foi ensinada e aplicada de acordo com padrões ocidentais, eurocêntricos, supondo que este modelo de diálogo funcionaria em perfeito encaixe com as bordas sociais do Brasil. Acredito que isso deva-se ao esforço de sistematizar as técnicas, o que é válido e necessário, mas trouxe uma miopia para as observações contextuais nas dinâmicas sociais, humanas e seus fazeres comunitários, a borda da borda.
O decolonialismo nos convida a questionar essa universalidade e reconhecer que o conhecimento não é neutro. A decolonialidade, nesse sentido, é uma proposta que busca resgatar e valorizar saberes e práticas que foram marginalizados, e exige a presença, o corpo, a linguagem desses sujeitos detentores de técnicas vivas e resilientes, evitando que se tornem meras teorias acadêmicas desconectadas da realidade, quase folclorizadas. Devemos descentralizar o discurso e as práticas da permacultura, valorizando as vozes, experiências e presença das culturas marginalizadas, e, com isso, estruturar equidade, acesso e ressignificação.
O feminismo latino-americano surge nessa proposta nos ensinando sobre a importância do cuidado, da interconexão, do acúmulo da aldeia, do local e da reciprocidade. A permacultura deve incorporar esses princípios de forma mais radical, reconhecendo que a sustentabilidade não é apenas uma questão técnica, mas também uma questão de relações humanas, culturais, sociais, relacionais, ambientais e políticas. As mulheres, historicamente responsáveis pelo cuidado da terra e da comunidade, têm muito a contribuir para uma permacultura mais sensível, equitativa, intuitiva e reflexiva para dentro dos sujeitos. A pouca presença imagética dos feitos femininos no campo da permacultura, nas consultorias e nas dinâmicas de poder, principalmente para atividades de valor econômico elevado, é um sintoma revelador de uma imagem ainda muito masculina, branca e de classe média dos fazedores da permacultura no Brasil.
A permacultura, numa perspectiva política, deve ser vista como um fenômeno sociocultural e ambiental que promove a resiliência e a garantia de direitos dos povos, diferente disso, ela é uma expropriadora de saberes ancestrais e periféricos. Nesse sentido, o “com quem” e “para quem” são elementos que precisam de análise e busca por soluções mais aproximadas com o povo periférico e a regionalidade. A permacultura não deve se limitar a técnicas de cultivo ou desenho de jardins e campos produtivos de propriedades particulares, pois também envolve a capacidade de adaptação das periferias diante das mudanças climáticas, sociais e econômicas. Ou seja, a resiliência e a cultura da permanência deve estar, para todos e todas, enraizada na diversidade, na cooperação e na flexibilidade.
A opinião
A permacultura, enquanto movimento coletivo de planejamento de um território sustentável com a presença humana, tem desafiado paradigmas e inspirado ações em prol de um mundo mais equilibrado e regenerativo desde a década de setenta do século passado. No entanto, é fundamental reconhecer que a permacultura convencional, praticada por um campo hegemônico, muitas vezes, negligenciou a presença dos indivíduos produtores de saber ancestral na exposição e no protagonismo de suas contribuições técnicas criativas e seus saberes. Os indivíduos pertencentes às culturas periféricas, distantes da civilidade ocidental, já assinalam essa lacuna na práxis permacultural, principalmente quando seus saberes são submetidos a uma abordagem universalista e ocidental que carece de diversidade e inclusão.
O chamado contemporâneo que reforça a necessidade de decolonização do conhecimento e das ações, convida a repensar essa visão e a valorizar as perspectivas marginalizadas. Não basta reconhecer a importância dos saberes ancestrais, é necessário abrir espaço para que os indivíduos originários sejam protagonistas em corpo, convívio e linguagem própria nos espaços de formação, de atuação profissional e de visibilidade imagética na cena brasileira dessa ciência interdisciplinar. A permacultura periférica, decolonial e feminista surge, ainda acanhada, como uma resposta a esse desafio, propondo uma abordagem com a cara do território que hoje chamamos de Brasil, sendo mais inclusiva, contextualizada e transformadora.
Ao descentralizar o discurso, para que venha de muitos lugares, poderemos ver e ouvir as comunidades periféricas. Assim, não estaremos apenas enriquecendo nosso repertório de práticas sustentáveis, resilientes e integrativas, mas também promovendo a justiça socioeconômica e ambiental. Projetos vinculados às políticas públicas populares ou preferencialmente estabelecidos em comunidades periféricas, podem integrar os diversos atores, estabelecendo valor e lugar à humanidade, valorizando o contexto global e sistêmico, criando e recriando as técnicas. Essa perspectiva é uma chave para a resiliência individual, comunitária e territorial. É um caminho para que a permacultura fortaleça a sua relevância diante das mudanças significativas da contemporaneidade, buscando construir coletivamente, na diversidade de corpos, sotaques, biomas e cidades, promovendo assim, ações que atendam às diversas realidades para a caminhada rumo a uma humanidade mais justa e harmoniosa.
A permacultura periférica, decolonial e feminista não é apenas uma proposta teórica, mas sim um chamamento à ação. Cabe a cada uma, a cada um de nós, enquanto agentes de mudança, adotar uma postura crítica em relação às práticas dominantes e buscar alternativas que promovam a diversidade, a equidade e o cuidado mútuo. Na práxis, é a consciência de caminhar rumo às bordas, atuar nos bastidores quando for necessário e criar clareiras no sistema. A visibilidade e protagonismo dos grupos minorizados leva a que estes revisitem a permacultura com seus olhares, falas, e corpos e, somente aí, juntos, a ressignificaremos numa perspectiva política e libertadora. Sabemos, de modo geral, que a permacultura tem sido um espaço majoritariamente branco, masculino, acadêmico e eurocêntrico. Assim, a partir dessa realidade, percebo que não há outra opção que não seja a do campo dialógico para que seja possível estabelecer diálogos entre os desiguais e com estes, caminhar para uma permacultura brasileira. Somente assim, com generosidade e solidariedade, poderemos construir um futuro no qual a Permacultura seja relevante em escala, alcançando os assentamentos, as periferias populosas, os territórios agrícolas e camponeses, seja diversificada em sua práxis e inclusiva para as gerações presentes e futuras. É a promoção da cultura da permanência sem aspectos metodológicos que replicam aspectos coloniais.
Em um mundo marcado por desigualdades, degradação ambiental, crescimento de ações disruptivas e colonizadoras, a permacultura periférica, decolonial e feminista representa uma filosofia, com método e práxis que permitirá apontar caminhos para a construção de respostas sociais mais resilientes, justas, regenerativas, no tempo e escala que precisamos. É possível aferir ações concretas dessa proposição, em lugares específicos, mas ainda minoritários. A Bahia destaca-se nessa caminhada com a atuação do Instituto de Permacultura da Bahia, fundado em setembro de 1992. Liderado por mulheres desde a sua fundação, executa papel que transcende a aplicação de técnicas agrícolas sustentáveis, técnicas de saneamento ecológico e de construção com barro e/ou bambu, ou a consultoria permacultural. O Instituto se entrelaça com a essência da vida comunitária e prioritariamente caminha na implementação de políticas públicas com a comunidade pela escuta de suas demandas. Atua em rede com várias outras organizações da sociedade civil na construção de políticas públicas relevantes para a população, como a política pública de agroecologia do Estado da Bahia, construção das conferências de meio ambiente no Estado. Atualmente vem construindo uma metodologia de rede, fincada dentro das comunidades periféricas e tradicionais, construindo metodologias e tecnologias sociais com e para elas e estabelecendo aliança na luta pela terra e pelo território. No entanto, também encontra desafios na formação de lideranças que atuem dentro da instituição, diversificando a origem de classe social. É preciso aceitar o desafio de alcançar uma maior diversidade étnica, pois como instituição baiana, é incoerente ser majoritariamente branca. Outra experiência digna de nota é o movimento Permangola idealizado no Kilombo Tenondé2, pelo Mestre Cobra Mansa, em conjunto com Isabel Fróes Modercin, que teve o objetivo de integrar a filosofia da Capoeira Angola com a ética e os princípios da permacultura, visando proporcionar o desenvolvimento humano de forma holística, no qual corpo, mente, espírito e meio natural estão integrados. Ao longo do tempo, o Kilombo Tenondé apresentou inquietações referentes à Permacultura que não dialoga com os saberes tradicionais e que não reflete a periferia do mundo, mas dela tudo copia. Isso afastou o Kilombo Tenondé dessa proposição de junção, processo promovido a partir das reflexões apresentadas pela liderança quilombola Nêgo Bispo, instigando o Kilombo Tenondé a identificar o que tem de chão e de diálogo íntimo com seus sujeitos e territórios. Essa situação trouxe ao Instituto de Permacultura da Bahia uma reflexão profunda e tem fomentado as mudanças políticas e metodológicas rumo à borda e à elaboração de governança contracolonial e defesa de um feminismo decolonial.
Há uma percepção de que é chegada a hora de abraçar essa visão e trabalhar juntas/ juntos na construção dessa perspectiva complexa, múltipla, na qual a diversidade seja celebrada nos espaços de poder da permacultura brasileira para que a interconexão seja reconhecida na prática popular, de modo que a cara da permacultura brasileira seja a cara do Brasil e, principalmente do território onde ela é aplicada, ovacionada e vivida. Que o cuidado com a fonte ancestral do saber seja a base de nossas relações, e que a presença dessa diversidade seja sentida concretamente. Juntas, juntos podemos transformar a práxis permacultural e moldar um futuro mais responsável com os saberes dos povos para que a solidariedade estabeleça relações de trocas justas, populares e o chão da permacultura brasileira, sulamericana, seja um reflexo de Abya Yala.
Consultas
Santos, A. B. dos. (2015). Colonização, Quilombos, Modos e Significações (Vol. 1). INCTI/Universidade de Brasília.
Santos, A. B. dos. (2023). O que a terra dá a terra quer. Ubu Editora.
Queiroz, L. (2020). Decolonialidade e concepções de língua: Uma crítica linguística e educacional. Pontes Editores.
Vergès, F. (2020). Feminismo decolonial. Ubu Editora.
1 – Instituto de Permacultura da Bahia. – lucianasarno@gmail.com
2 – Associação eco educativa e cultural – https://kilombotenonde.net/.