A primeira Agrofloresta Pública de São Paulo

Perma – Rev. Perma – Perma jour., v. 1, n. 1, e11202301, primavera de 2023

The First São Paulo’s Public Agroforestry

VEIGA D’ANGELIS, Gilberto Machel1

Submetido em 15dez2022, Aceito em 31ago2023

Avaliado por Arthur Nanni e Carlos Cardoso

Resumo: Este texto relata a experiência ocorrida na icônica Vila Itororó, em São Paulo, no ano de 2015, a partir de uma Oficina de Agrofloresta ministrada pelo autor, que resultou na implantação da Primeira Agrofloresta Pública de São Paulo. A oficina fez parte de um experimento sociocultural complexo e inédito na cidade, o Projeto Vila Itororó – Canteiro Aberto, que visava questionar a destinação e uso dos espaços públicos urbanos, dando à população a possibilidade de intervir e propor novos usos para o futuro Centro Cultural, em paralelo e simultâneo ao andamento dos projetos de restauro e arquitetônico final.

Palavras-chave: Agrofloresta Urbana; Sistemas Agroflorestais; Floresta Urbana de Alimentos; Permacultura Urbana; Agroecologia Urbana.

Abstract: This text reports the experience of an Agroforestry Workshop taught in 2015 by the author in the iconic Vila Itororó in São Paulo (Brazil). The workshop was included in the Project “Vila Itororó – Canteiro Aberto”, and resulted in the implementation of the first São Paulo’s Public Agroforestry. The experience was part of a complex, unprecedented socialcultural experiment in the city, which aimed to question the destination and use of urban public spaces, providing the population with the possibility to intervene and propose new uses for the future Cultural Center, parallel with the progress of the final architectural and restoration projects.

Keywords: Urban Agroforestry; Agroforestry Systems; Urban Food Forestry; Urban Permaculture; Urban Agroecology.

Introdução

O curso sobre Sistemas Agroflorestais que resultou na implantação da agrofloresta urbana da Vila Itororó, em 2015, na cidade de São Paulo, integrou o primeiro grupo de oficinas culturais que aconteceram logo no início do Projeto “Vila Itororó – Canteiro Aberto”.

A proposta de curadoria desse novo centro cultural em formação e construção (a Vila Itororó) previa que as atividades abertas ao público acontecessem ao mesmo tempo em que se dava o processo de reforma estrutural e restauração da infraestrutura física do espaço. Ao contrário do que normalmente ocorre, que seria restaurar e realizar todas as obras de infraestrutura primeiro, e só então entregar o “prédio” ou o espaço à população para que pudessem usufruir do mesmo.

Assim, a experiência do “Canteiro Aberto” constituiu-se de fato como um experimento social e cultural na escala da cidade, onde o próprio uso e ocupação do espaço pela população – fossem usos espontâneos ou planejados previamente na forma de oficinas – poderiam trazer implicações para o projeto cultural em construção, assim como para o desenho e usos futuros do espaço físico, enquanto este ainda estava sendo pensado e projetado pelas equipes de arquitetura e engenharia.

Contexto

A Oficina de Agrofloresta Urbana foi totalmente gratuita para a população, uma vez que se tratava de uma formação promovida em um equipamento público, sob os auspícios da Secretaria Municipal de Cultura, e foi o primeiro curso dessa natureza na história da cidade. Também foi uma das oficinas de maior duração de todo o projeto do “Canteiro Aberto”, tendo sido inicialmente prevista para ocorrer ao longo de três meses, com dois encontros semanais de quatro horas. No fim, devido à extrema complexidade do contexto, mas também ao grande envolvimento e engajamento que o curso oportunizou aos participantes, a oficina teve uma duração total de quatro meses e meio, entre agosto e dezembro de 2015, totalizando mais de 150 horas de formação teórica e prática em Sistemas Agroflorestais Sucessionais (SAFS), baseados nos princípios da agricultura sintrópica de Ernst Götsch2.

O interesse da comunidade e a demanda surgida foi tão grande que, embora o tema fosse ainda extremamente novo e largamente desconhecido à época, foi necessário criar uma lista de espera, pois o curso lotou, com a participação de aproximadamente vinte pessoas ao longo de todo o processo. Dessas, em torno de quinze atuaram de forma bastante ativa e constante, decisivas para a construção coletiva do projeto.

Embora o curso fosse aberto a pessoas de qualquer idade e perfil – e tenha-se buscado incentivar a inscrição da população local e da antiga comunidade que vivia na Vila – a maioria dos que se inscreveram eram pessoas com formação universitária (quase todas mulheres), o que talvez ajude a explicar o interesse por um tema ainda tão novo e desconhecido na sociedade em geral. Por outro lado, esse perfil de alta qualificação das participantes trouxe muita segurança ao nosso trabalho, uma vez que somaram-se aos conhecimentos e experiência em permacultura e agrofloresta do grupo, formações técnicas e acadêmicas como: arquitetura, engenharia ambiental, engenharia florestal, biologia, bioquímica, veterinária, artes em geral (música, artes gráficas/plásticas), antropologia, além de experiências no setor do funcionalismo público da cidade, entre outras.

O objetivo principal da experiência, para além de propor uma nova forma de ocupação e uso do espaço público, e da formação pública, gratuita e aberta à população sobre Sistemas Agroflorestais em meio urbano, era criar uma horta agroflorestal que pudesse suprir ao menos em parte a necessidade e demanda da cozinha local (que também era um experimento em construção); além disso, como parte central e mais polêmica da intervenção, a proposta pretendia permitir o desenvolvimento de uma “floresta urbana pública”3 no coração da cidade, numa área extremamente restrita e cheia de conflitos e obstáculos “urbanísticos”.

A Vila Itororó é uma antiga vila residencial que existiu como tal até o início da década de 2010, e recebeu esse nome por ter sido construída no entorno de uma fonte de água (uma das nascentes do Rio de mesmo nome), cuja estrutura de proteção foi inaugurada em 1822. Hoje, 200 anos depois, a fonte ainda está lá, numa região central e altamente urbanizada da cidade, a duas quadras da Estação de Metrô São Joaquim, perto de redes de fast-food, de um posto de gasolina, e ao lado de uma das maiores vias da cidade, a Avenida 23 de Maio, sob a qual ainda “vive” o Rio Itororó. Assim, a Vila resiste ao tempo e às mudanças, de dentro e de fora, para seguir contando a sua história como um dos principais locus de produção e transgressão da cultura paulistana.4

A experiência

Desde o início da concepção da Oficina de Agrofloresta no contexto do Projeto do “Canteiro Aberto”, a ideia não era simplesmente ensinar como planejar e implementar um sistema agroflorestal em área urbana – o que já não seria simples de nenhuma maneira – mas discutir, no fundo, o “direito à cidade” e, para além disso, as distintas concepções do que é “cultura”, “patrimônio” e do quanto a sociedade pode ou não intervir e agregar com os seus conhecimentos à construção e manutenção dos espaços públicos.

Assim, a “Oficina de Agrofloresta” na realidade contemplou uma enorme gama de reflexões teóricas e técnicas dos mais diversos campos, e teve os princípios éticos e de planejamento da permacultura como uma das suas principais ferramentas e bases metodológicas, de maneira implícita e explícita.

Um dos primeiros e mais básicos princípios apresentados e colocados em prática desde o início da oficina foi justamente o primeiro princípio de planejamento proposto por David Holmgren, em 2002 – o “Observar e Interagir” (Holmgren, 2013). A parte teórica do curso durou cerca de um mês e meio e contou com 12 encontros, o que correspondeu a cerca de um terço do total do curso. Durante esse período nós estudamos não apenas o campo temático específico, com a exposição e discussão aprofundadas sobre os princípios teóricos e das técnicas da agricultura sintrópica e dos sistemas agroflorestais, mas também o contexto histórico e geográfico da Vila, suas transformações ao longo do tempo, a hidrografia local e a história do encobrimento dos rios de São Paulo, em especial o Rio Itororó. Este trabalho de “observação” prévio, que significa mais propriamente um estudo minucioso do local (em seu contexto micro e macro), incluiu também diversas incursões ao “pátio das casas” da Vila, onde seria o local de nossa intervenção, com visitas a campo para mapeamento, identificação e [re]conhecimento do espaço.

Nessa primeira etapa de levantamentos em campo, utilizamos os clássicos esquemas e metodologias da permacultura como a “leitura da paisagem”, em seu sentido mais amplo, que inclui a paisagem social e cultural, além da ambiental, e o mapeamento dos “setores de influência”, adaptados à realidade de uma área extremamente urbanizada e central da cidade, incluindo a interpretação dos ventos, chuvas, insolação/iluminação, umidade, relevo, contaminação dos solos e águas, vizinhança, estruturas construídas presentes, entre outras influências pertinentes.

A partir daí, começamos a entender o tamanho da complexidade e dos obstáculos, físicos e técnicos, que teríamos que transpor para prosseguir com o nosso trabalho. Um dos primeiros e principais desafios que encontramos foram as caixas de inspeção e tubulações dos antigos esgotos da Vila. Não havia um mapeamento completo ou satisfatório realizado anteriormente pelas equipes de engenharia e arquitetura, de modo que ninguém sabia ao certo o que esperar encontrar ali. Por isso, nos vimos obrigados a realizar nós mesmos tal mapeamento, sob pena de interromper indefinidamente nosso processo de trabalho. Assim, um levantamento completo de todas as tubulações, caixas de inspeção e das águas que passam pelo local foi realizado, incluindo a análise das duas fontes de água existentes que não são provenientes de esgotos. As análises resultaram águas não contaminadas, e a nascente do “Itororó Mirim”, um dos afluentes do Rio Itororó, que nasce dentro da Vila, embora canalizada, mostrou-se uma água de excelente qualidade, da qual inclusive nos servimos muitas vezes para nos refrescarmos depois de longas horas de trabalho com a terra.

Com os levantamentos, descobrimos que havia um vazamento antigo de um esgoto de águas cinzas provenientes da lavanderia de um vizinho, que eram indevidamente lançadas para dentro da Vila, e como as tubulações estavam rachadas, o vazamento para o solo da Vila era constante. Esse processo estava acontecendo há pelo menos 2 anos ou mais5. Para corrigir o problema de forma imediata e razoavelmente satisfatória, propusemos e implementamos um “círculo de bananeiras”, um sistema biológico que funciona como um “filtro” para as águas cinzas6. Posteriormente, a equipe de engenharia responsável pelas obras da Vila poderia, a qualquer tempo, simplesmente desviar a tubulação irregular que o vizinho mantinha, canalizando essas águas de um modo adequado para a rede pública local, sem prejuízo para nenhuma das partes envolvidas, e sem que isso afetasse significativamente a agrofloresta. Assim, tivemos o aval da equipe de arquitetura para prosseguir com o nosso trabalho e resolver os problemas de saneamento ambiental locais, de modo a dar sequência à implantação da agrofloresta, sem causar danos colaterais ao ambiente.

Um segundo filtro biológico, desta vez com plantas aquáticas (macrófitas), foi também implementado numa das caixas de inspeção, que recebia ainda águas residuais de uma das tubulações antigas de dentro da própria Vila, de modo a fitorremediar essa última fonte de “contaminação” por águas cinzas que ainda passavam pela área. A solução encontrada também serviu para integrar esse “obstáculo” físico (a caixa de cimento) como mais um elemento do sistema vivo total, agregando ainda um componente estético e de paisagismo funcional à agrofloresta, o que nos lembra do princípio “cada elemento executa muitas funções” (Mollison, 1988).

Uma vez que havíamos resolvido o problema do esgoto irregular na área – que era o mais urgente e complexo – tivemos finalmente a oportunidade de começar o trabalho com a terra. Essa primeira etapa em campo não foi nada fácil porque havia no local, além de tudo, uma quantidade imensa de entulho e lixo com aproximadamente 5m³ de materiais acumulados por décadas de descarte irregular e mau uso do solo e dos recursos locais, motivados por uma série de fatores socioeconômicos, políticos e ambientais. Retiramos cuidadosa e sistematicamente pilhas imensas de concreto, tijolos e telhas, além de todo tipo de plástico, vidro e metal que encontramos. Apenas depois disso é que pudemos, então, iniciar o planejamento dos plantios.

Tínhamos em mãos os nossos antigos esquemas teóricos sobre como poderíamos ou gostaríamos de [re]criar a paisagem no local. No entanto, depois de remexer a terra, desenterrar seu passado e criar soluções efetivas para os problemas que ali havia, o design “ideal” parecia brotar da própria paisagem. Nesse ponto do processo, foi interessante notar que esse design não surgiu das nossas cabeças e projetos abstratos, mas efetivamente do trabalho concreto e constante com a “paisagem” real, pisando e nos sujando de terra, água e vida. O trabalho de “revelar” ou “desvelar” o desenho mais próximo de um design “ideal” da paisagem concreta é muito mais um trabalho de sensibilização do olhar coletivo, mãos na terra e envolvimento com a realidade, do que um planejamento teórico saído de mentes “brilhantes” de um ou outro permacultor individualmente.

O que foi se tornando claro para nós a partir de então, foi que o círculo de bananeiras, embora estivesse na borda, em um dos extremos da área, era o “centro” de onde deveria partir o nosso plantio, uma vez que era de fato dele que “irradiava” a água, energia e biomassa do futuro sistema. Tudo começou ali, com um problema de esgoto irregular e mal tratado, transformado em muita vida biológica, adubo, plantas, folhas, frutos e umidade que era dispersa por todo o ambiente. Aqui vimos na prática a “máxima” de Bill Mollison se tornando evidente: “o problema é a solução” (Mollison & Slay, 1998). Não apenas não era possível prever quais problemas encontraríamos no espaço, como – a rigor – não seria nossa responsabilidade corrigi-los, pois do ponto de vista estritamente profissional, eu não havia sido contratado para tal. Mas lidar com esse problema da paisagem na qual pretendíamos intervir nos deu a grande oportunidade de encontrar a solução mais adequada e potente para o desenho do nosso sistema.

Começamos então a “desenhar” os canteiros – dessa vez no solo – que pareciam espontaneamente irradiar a partir do círculo, preenchendo toda a área. Havia também um pequeno declive do círculo em direção às extremidades dos “raios”, de modo que a energia e a água tendiam a escoar no sentido dos canteiros. Delineamos e levantamos os canteiros todos, seguindo esta lógica e respeitando também todos os outros obstáculos do local, como as muitas caixas de inspeção (de cimento), o poço de água suja, porém não contaminada, e um pé de manga já bem grande que sombreava boa parte da área.

Conforme os participantes iam se apropriando das técnicas e princípios apresentados ao longo do curso, começavam a trazer suas próprias sugestões, diferentes propostas e iniciativas para complementar e ampliar o escopo do projeto, abarcando outras dimensões, lúdicas e sociais, que nossa intervenção poderia agregar ao lugar. A experiência tornou-se cada vez mais uma construção coletiva e autônoma, embora sempre sob uma coordenação. Mas ficou muito claro nesse processo, que mesmo pessoas sem nenhuma experiência prévia em uma área considerada por todos tão difícil e complexa como a agricultura natural, podem se envolver, aprender, se apaixonar e se apropriar do manejo da vida e do espaço público para o bem coletivo e produzindo abundância para o “próximo”, sem medo, sem egoísmo e sem avareza.

Diversas ideias e “subprojetos” foram desenvolvidos, liderados pelos próprios alunos, a exemplo de uma engenhoca de puxar água do poço para servir à irrigação do plantio, como ferramenta lúdica para crianças e como equipamento didático agregado à agrofloresta. Outra ideia para utilizar a água de forma lúdica e prazerosa – nesse caso com a água limpa e refrescante da fonte – foi a de construir um deck onde se pudesse sentar e bombear a água para tomar uma “ducha natural” ali mesmo. Com a necessidade de proteger os canteiros e melhor delimitá-los aos visitantes, sugeriu-se uma parceria com a marcenaria da Vila (outra oficina simultânea), e começamos a delimitá-los com pequenas ripas de madeira (Figura 1), o que gerou um acabamento estético muito mais bonito e didático para o local. Uma das alunas que trabalhava com costura resolveu fazer uma espécie de “estandarte” para a agrofloresta, em referência a uma estatueta de um “mago” encontrada num dos poços que limpamos na Vila. Outra aluna começou a organizar o material antigo encontrado enterrado no solo, como moedas, brinquedos e objetos dos moradores, numa espécie de altar da “arqueologia” local. Enfim, as ideias foram surgindo e a agrofloresta da Vila Itororó foi se tornando algo muito maior do que um simples projeto de plantio. Dessa forma, para cada novo problema ou obstáculo que encontrávamos, uma solução bastante criativa aparecia, e com muita alegria e disposição todos co-laboravam para torná-la realidade.

Figura 1: Detalhe dos canteiros delimitados com ripas de madeira.

Finalmente, após todo o trabalho de preparação do espírito, da mente, do solo e das mãos, havia chegado a hora de plantar propriamente! Escolhemos as espécies, juntamos as boas sementes de que dispúnhamos, fomos em busca das mudas de árvores (principalmente as nativas) e começamos a sistematizar o plantio. Fomos plantando aos poucos, de modo organizado e sistemático. Conseguimos com a Prefeitura, por uma colaboração totalmente gratuita, o material para a cobertura dos canteiros, oriundo de podas já trituradas das árvores da cidade, assim como um material extremamente precioso para a cobertura dos caminhos, constituído de tocos e galhos de árvores da cidade – nesse caso, de Ficus e Cedro. Fizemos um trabalho minucioso e com muita dedicação para o design destes caminhos de tocos para que ficassem o mais bem cobertos possível (Figura 2).

Figura 2 : Detalhe dos caminhos cobertos por tocos.

 

As funções desses acabamentos para o sistema são muitas: a estética, porque um caminho com troncos de cedro, que seriam provavelmente descartados em aterros da cidade, é como um “tapete vermelho” para a agrofloresta e, além disso, oferece um destino muito mais nobre para estes resíduos florestais urbanos. A didática de uma ação como essa é poder ajudar as pessoas a entenderem melhor a função e utilidade que podemos dar às árvores e madeira em geral, pois esta solução é muito melhor que um caminho de asfalto ou cimento, que são impermeáveis, tanto quanto é melhor do que se fosse apenas terra batida e exposta, gerando um lamaçal e compactando cada vez mais o solo. A madeira no caminho e nos canteiros ajuda a absorver o excesso de água das chuvas e também é uma reserva de água para os tempos de seca, de valor incalculável para o ecossistema. Além disso, à medida que a madeira vai apodrecendo, torna-se um excelente adubo para a criação de solos mais férteis, porque favorece a proliferação de fungos, bactérias decompositoras, insetos e uma enorme rede de relações bióticas extremamente benéficas para o aumento da resiliência dos sistemas vivos e da saúde do solo.

É difícil para a maioria das pessoas7 compreender ou mesmo acreditar nisso – o quanto é possível produzir de vida em apenas 100 metros quadrados como foi o nosso caso. Ainda com tantas adversidades pesando contra, como o fato de estarmos no centro da maior metrópole do continente e estarmos passando, àquela época, pela maior “crise hídrica” da história da cidade e da região sudeste do país.

Mas o fato é que ali, em um contexto tão adverso e restrito, plantamos inúmeras mudas de árvores nativas da mata atlântica, quase 30 mudas de bananeiras, taiobas, inhames; incontáveis sementes de mamão, feijão, milho, mandioca, quiabo, berinjela, repolho roxo, couve, brócolis, almeirão, alface e outras hortaliças; plantas alimentícias não-convencionais (PANC) como capuchinha, peixinho e diversas plantas espontâneas como serralha, caruru, plantas medicinais (babosa, pariparoba, boldos, capim-cidreira, etc.); adubações verdes como o amendoim, amendoim bravo, aveia preta, crotalária, feijão guandu, gergelim, girassol, feijão lab lab, tabaco, e muitas flores silvestres. Enfim, implementamos um sistema extremamente biodiverso com ao menos 60 espécies distintas e muitos indivíduos de cada espécie, que ofertaram colheitas iniciais em pouquíssimo tempo, e muitas outras ainda viriam.

Tivemos ainda uma rápida minioficina dentro do curso de agrofloresta sobre abelhas nativas sem ferrão (melíponas) e introduzimos uma colmeia de Jataí em uma caixa didática, para os futuros visitantes da Vila poderem aprender mais sobre as espécies nativas e sua importância para a polinização de todas as espécies de plantas dos biomas brasileiros. Além desta, havia ainda outra colmeia da mesma espécie, espontaneamente alojada numa das paredes ao lado da agrofloresta; e também instalamos mais algumas “iscas” com intuito de aumentar a quantidade de moradoras melíponas no local, fortalecendo assim o sistema agroflorestal e aumentando a sintropia8 e resiliência da vegetação.

Nossa oficina iniciou-se em agosto de 2015, mas os plantios efetivamente só se iniciaram por volta do meio ou final de outubro. Concluímos o curso, entregando a agrofloresta à cidade, em meados de dezembro, apenas dois meses após o início dos plantios. Isso, do ponto de vista da agricultura convencional, é um tempo extremamente curto, praticamente desprezível em termos de produção ou desenvolvimento do sistema. Nos dois meses que se seguiram, em janeiro e fevereiro de 2016, o sistema ficou praticamente “abandonado”, sem manejo ou mesmo visitações da nossa parte, uma vez que o curso oficialmente já havia acabado.

Apesar da “crise hídrica” que se passava em São Paulo, choveu intensamente nesse período, e graças a um planejamento e implementação criteriosos por parte do grupo – e especialmente do trabalho de cobertura do solo sistematicamente bem-acabado, o sistema não apenas suportou a carga torrencial das águas, drenando e absorvendo os excessos e evitando a erosão do solo, como se desenvolveu incrivelmente neste período, de modo totalmente autossuficiente. Estivemos uma única vez no final de janeiro para ver como as coisas estavam, fizemos muitas colheitas e manejamos alguma coisa emergencial, como as adubações verdes que já estavam subindo sobre outras plantas. No final de fevereiro fui chamado pela equipe de ativação cultural para comparecer com urgência e acompanhar um processo na Vila que poderia gerar grande interferência na agrofloresta. Quando cheguei lá, as plantas estavam lindas e a floresta de apenas quatro meses já estava incrivelmente exuberante! Tudo estava crescendo muito rápido e saudável, sem adubos, sem correção de solo, sem venenos, sem irrigação artificial (Figura 3).

Figura 3: Configuração final da agrofloresta.

No entanto, um incidente causado pelo excesso de chuvas e pelo péssimo estado de conservação das edificações, obrigou os arquitetos a interditarem completamente o edifício conhecido como “Palacete”, o mais emblemático da história arquitetônica da Vila Itororó. O problema maior foi que justamente o lado do palacete que fazia limite com a agrofloresta, não teve seu “levantamento arquitetônico” realizado previamente pelas equipes de arquitetura, ao contrário das demais fachadas do edifício, que tinham tido o levantamento realizado anteriormente ao início dos trabalhos da agrofloresta. Portanto, uma série de infelizes coincidências obrigou a equipe de arquitetura a realizar este levantamento de forma emergencial, pois avaliaram que poderia haver risco de desabamento de partes do edifício naquele momento. Porém, como agora não poderiam mais entrar nele para realizarem as medições necessárias, seria preciso passar com uma máquina (grua) sobre a área da agrofloresta para fazer algumas medições externas.

Durante uma semana acompanhei atentamente esse processo. Conversamos diversas vezes e tentamos de todas as maneiras evitar a remoção completa do sistema florestal. Inicialmente disseram que talvez fosse possível. Mas dois dias depois concluíram que não, e fui obrigado, junto à equipe de funcionários da empreiteira, a “desmontar” todo o sistema. Retiramos todas as ripas de madeira do entorno dos canteiros. Desenterramos literalmente um sem número de plantas num solo que, embora incrivelmente fértil e já bastante estruturado, estava agora também bastante encharcado, pois havia chovido muito nos dias anteriores, e com o início do “pisoteio” da máquina no local, a camada de proteção do solo havia sido destruída. Então, trabalhamos muito em meio a um lamaçal cada vez maior, desmontando e destruindo um trabalho tão bonito e que tanta vida havia trazido de volta à Vila em tão pouco tempo. Foi difícil, cansativo, doloroso e triste.

Nós sabíamos que possivelmente a agrofloresta teria que ser removida um dia, afinal as obras estavam em andamento e tudo poderia acontecer. Mas não sabíamos que seria tão rápido. A agrofloresta não completou seu primeiro ano de vida, sequer chegou aos seis meses. No final de dezembro de 2015, em parceria com uma das participantes da turma, elaboramos um “Plano de Manejo” para deixar como um guia à população da cidade, aos frequentadores da Vila e a quem quisesse fazer parte do cuidado daquele espaço coletivo, para o bem comum. Era um material inédito e simultaneamente didático, pedagógico e lúdico. Uma cartilha para entender e adentrar ao universo mágico de nossa agrofloresta. Não chegou a ser publicada! Quando estávamos acertando detalhes de revisão e diagramação para uma possível impressão a ser disponibilizada dentro do próprio Espaço Cultural da Vila, chegou a notícia do fim.

Mas a agrofloresta não cansa de nos ensinar que “a vida é um fluxo e não uma conserva”, como diria Ernst. A despeito de qualquer coisa, nós criamos um precedente para se pensar a possibilidade de produzir alimentos saudáveis (orgânicos); a reintrodução da flora e consequentemente da fauna original do bioma no qual se localiza a cidade; a criação efetiva de microclimas desejáveis, benéficos e agradáveis à população; e, principalmente, a possibilidade de que tudo isso pudesse acontecer em espaços públicos da cidade.

De fato, projetamos e implementamos a primeira agrofloresta “pública” de São Paulo, o que na prática significava que teríamos que aprender coletivamente – nós todos/as, frequentadores e usuários da cidade – como gerir e como nos beneficiar deste espaço. Mas o que é certo é que todos/as poderiam se beneficiar dele e, em alguma medida, isso já estava acontecendo. Segundo as estimativas do próprio Instituto Pedra, entre 2015 e 2018 cerca de 50 mil pessoas visitaram o espaço e, durante alguns meses, puderam também conhecer e se envolver com a agrofloresta.

Agradecimentos

Agradeço a todas as agrofloresteiras e agrofloresteiros da Vila Itororó, que se tornaram grandes amigos/as de caminhada e parceiras/os na construção desse outro mundo possível, muitas das quais são hoje referências em diversas áreas de atuação permaculturais. Agradeço também à toda a equipe de Ativação Cultural do Instituto Pedra que, ao me convidar para este trabalho, corajosamente abriu as portas do Centro Cultural em formação para abraçar uma das experiências mais desafiadoras e inovadoras para imaginar uma cidade do futuro possível.

Referências bibliográficas

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1 – Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Agroecologia e Desenvolvimento Rural, PPGADR-UFSCAR, campus Araras (Centro de Ciências Agrárias), gdangelis@estudante.ufscar.br

2– Ver (Andrade & Pasini, 2022; Pasini, 2017; Peneireiro, 1999; Young, 2017)

3 – A exemplo do que foi proposto por P. A. Yeomans em “The City Forest” (Yeomans, 1971), ou de propostas bem mais recentes como as Florestas Urbanas de Alimento (Clark & Nicholas, 2013; Vannozzi Brito & Borelli, 2020) e outras propostas semelhantes.

4 – Uma visão mais detalhada e documentada sobre a história da Vila, assim como sobre todo o Projeto do Canteiro Aberto pode ser encontrada no site do Instituto Pedra, responsável pelo projeto de restauro, curadoria e ativação cultural (o Projeto “Vila Itororó – Canteiro Aberto”) e gestora do espaço durante os primeiros 3 anos do Centro Cultural (2015 a 2018), https://institutopedra.org.br/projetos/vila-itororo/.

5 – Tempo transcorrido desde que os últimos moradores da Vila foram removidos, até a nossa descoberta.

6 – Para uma compreensão e visualização mais clara deste e outros sistemas de saneamento ecológico, ver a cartilha do IPESA sobre Manejo Apropriado da Água (IPESA, 2012), onde estes sistemas são bem detalhados, com ilustrações bastante didáticas.

7 – Incluindo muitos engenheiros agrônomos e agricultores.

8 – Entendida aqui como o nível de complexidade, interações e organização interna do sistema.